quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Coisa encardida

Dona Arlete do Sítio Cercado
Anda esquisita.
Anda com um olhar de nadavê.

A morte carregou Arnaldo,
Arnaldo da Dona Arlete do Sítio Cercado
(Companheiro e estimado vagabundo da redondeza).
Depois, a vida carregou seus meninos,
Os meninos da Dona Arlete do Sítio Cercado.


As mãos da Dona Arlete do Sítio Cercado
Agora areiam antigas panelas de alumínio
Enquanto em seus lábios
Dorme antiga canção de ninar.
Ela lembra dos meninos
Que dormiam no berço
Enquanto as suas mãos,
Aquelas mesmíssimas mãos,
Gastavam-se em arear panelas.

Saudade é coisa encardida
Não areia, não limpa
Gruda em qualquer cantinho
E do cantinho, teimosa, não sai.

(“Boi, boi, boi da cara preta...”)

Toda canção de ninar
É de botar susto em criança.
É aviso: a vida é medo.

A torneira jorra muita água
Água que carrega a areia fina pelos vãos dos dedos
Da Dona Arlete do Sítio Cercado.

O velho relógio da sala jorra muito tempo
Tempo que carrega os filhos pelos vãos da vida.

“Vida besta” – suspira Dona Alerte do Sítio Cercado –
“Que lágrima, um dia, a dor minha carregará;
Quanto tempo ainda para o tempo gastar-me em dor?”

(27/11/2006).

A mortalha de retalhos

Não se lembra quando, mas
A certa altura da vida começou a tecer uma mortalha com antigos trapos
Panos sobrepostos, costurados com pontos miúdos.

Engraçado, a mortalha, ano a ano,
Ficava menor
O envelhecer lhe encolhia o corpo
Para que pano maior?

Eis, pois, que dia inadiável daria uso para os retalhos juntados
Eis, pois, que esse dia lhe traria todos os silêncios da terra

Os trapos juntados teriam então sua serventia
Cobririam o corpo miúdo; olhos outros ficariam livre de examinarem
Com atenção demasiada tão triste e feia figura

A mortalha livraria seu rosto dos terrões arremessados pelo coveiro
A mortalha seria sua única e verdadeira obra

Não se lembra quando, mas
A vida pareceu-lhe que era aquilo mesmo
Juntar retalhos e costurar mortalhas para esconder-se dos vivos
Para aninhar-se, com muito jeito, em silêncio, no colo da terra.

(28/11/06).

Giro de maçaneta

“É aquela porta ali.”
(Sempre há uma porta ali;
O que me agrada
Não é a porta em si,
Mas o que ela guarda).

O menino volta a informar:
“Fale com a moça de vestido vermelho”:
Então, a porta esconde uma mulher,
Moça talvez. Bonita talvez.
A certeza é vermelha.

Giro a maçaneta
Manso no meu pensar e
Empurro a porta
Mansa e
Nascida para dividir mundos.

“Sim, o que deseja”,
Diz-me uma mulher de azul.
Atordoado no meu pensar,
Nada desejo desejar.

Então, a certeza tornou-se azul.
Contrariado, giro a maçaneta e
Encosto a porta
Tal velho coveiro
ao fechar um caixão
Vazio de esperança.

Moça, bonita e de azul:
Puro desencanto
De um mundo que imaginei
Menos defunto e vermelho.

(24/11/2006)