quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Caneta-tinteiro

Em tempos difíceis
Em que as Ninfas
Se faziam ausentes
Em que as Musas
Teimavam em vagar
Pelo Olimpo
Ou galinhar
Para longe da poesia
Os poetas tinham também
Uma boa desculpa
Para vagabundear
E nada produzir
Além da própria preguiça:
"Chiii! Acabou-se a tinta!"
...
"Chiii! Não imprime!"

Sonoridades mudas

O que dizem os acordes do violão distante
A não ser a solidão plena em Ré menor?

Grande é a distância entre o som vibrado
E aquele que nunca sairá da garganta
Venha senhora dos pensamentos meus
E diga-me o que vai em sua alma

Mostre-me tudo o que você não vai me falar
Nesta noite de abismos ao invés
Nas estrelas medidos e perdidos
Em mil sons, notas longas, decibéis

Conte-me o que você jamais ousaria
Faça um gesto com sua voz muda e conte-me
Do luar que desapareceu, das terras
Outras eras, outros mundos seus e só seus

Caminhe por todo o meu corpo
E aqueça este peito frio que lhe chama
Arda-me em seus s, no seu seio
E afague todas estas lembranças, chamas

Quero um poema mudo, um violão calado
Um segredo guardado e uma nota nua
Quero ouvir o que você fala e eu não escuto
Quero um sussurro em seu suspiro guardado

Sonhos sôfregos sofridos sorrateiramente soltos
Busquem os segredos desta mulher que me assombra.

Mandinga, nega



Vim pra te ver sambar,
Nega vim pra te ver,
Quero te ver rodar,
Nega quero te ver

Mexendo, remexendo,
Meu coração pisando...
Não vês que estou sofrendo,
Pois estou te amando?

Tu tens o samba no pé,
Tenho-te no coração.
Aprendi a sambar até,
Não me jogues fora não!

Fiz mandinga ao luar
Pra sambar contigo.
Fui no bruxo rezar
Pra sambar contigo.

Dá tua mão e vem pra cá,
Quero te ver sambar,
Roda a saia mulata...
No samba vou te amar.

Interior

Mudo
Falo
A mim
Mesmo
Sobre
Rosas,
Flores...
De ti
Muda,
Triste,
Nada
Falo.
Mudo,
Amor
Calo.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Do tempo (Negativa II)



Não. Não quero falar da eternidade
É preciso muito tempo para falar da eternidade
E o tempo me é caro.

Penso tantas coisas
E estas coisas, por certo,
Um dia pensaram-me.

Lá fora o instante, o momento,
Derrete-se nas escuras paredes
Dos prédios e escorre pelas ruas.

Lá fora é cinza,
Cá dentro sou cinza.

Sendo assim,
Meu peito se faz tábua estreita,
Tal e qual a do velho e bom Graciliano.

Por isso,
Escrevo barbaridades
E sonho tonalidades escuras.

Para manter esta tábua estreita,
Em que escrevo, já disse e fiz doidices.

Não quero discutir o eterno
E nem vou fazer o que devo fazer.
"Pela tábua estreita?", pergunta-me.
Sim, porque o tempo me é estreito.

Outono

O Outono é puro mistério...
...É uma mulher linda, linda
De olhos tristes
E irremediavelmente linda
Que salta do décimo andar
Morre e ninguém
Sabe o motivo do gesto.

O Outono é um mistério.

Que nos contorce a alma
Que nos deixa em feridas

Mas por ser mistério
Nos dá em alguns dias
Umas parcas bandagens
Que remendam, porém
Nada curam, nada saram.

O outono é um mistério.

Que nos deixa taciturnos
Que nos faz moribundos

Mas por ser mistério,
Não chega definitivamente
A matar, a trucidar
Limita-se a torturar
Como aborrecidas
Cócegas na sola do pé.

Inverno

Não.
Não me acuse de ser frio
Não posso ser frio
Frio é seu olhar
Frios são gestos calculados
Amor de hora marcada
Com ofício
Protocolo
E carimbo de recebimento

Junto meu corpo ao seu
Sinto um calor bom
Lá fora tudo é gélido

Levanto, vou à janela
Sopro no vidro
E escrevo um poema
À mais fria das mulheres
De corpo quente e lábios ardentes

Você dorme
Apago o poema
Esqueço a fúria
E procuro seu colo.

Primavera

É madrugada
E a poesia não dorme
Os corações não dormem
E a solidão é insone

É noite fria
E as estrelas
Lançam seus raios-estalactites
Na direção de minh'alma
(mais fria que o frio curitibano)

É Primavera
Os vasos avisam
As flores nascem
Gerânios, gardênias
Jasmins...
Os vasos transbordam
E meu coração congela-se.

As flores nascem
E eu em cada pétala
Penso um poema.

Chope preto
Noite clara
Conversas... risos...

E eu rabiscando
De olhos fechados
Teu rosto
O teu retrato
Num guardanapo de papel.

Verão

Chove. Trovejou a noite toda.
É manhã. O céu é sem graça
E os olhos da desgraça
Avizinham-se, rondam-me.

É Fevereiro
Anúncio de Março,
Vermelho inferno
No céu feito de mormaço.

Canto e Vozes. Ouço um canto,
Soprado da igreja ao lado.
É um desses cantos antigos,
longos, medievais,
Anuncia: "O Paraíso é infinito
E os homens são mortais".

Caio em mim,
Ou antes, tropeço
E um anjo Serafim
Sopra-me aos ouvidos:

"Dezenove dias de Fevereiro,
Cinqüenta após Janeiro,
Sem respostas, sem cartas,
Ou um sinal de fumaça, talvez",

Choveu e nos meus olhos
Nem parece que tanta água desceu.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Oceano


O mar agita
Veleiros e
Meu coração
Cogita
Do querer e
Do sentir
E as partes de mim
São vagas e
Dispersas
Nas ondas deste mar
Transfiguram-se
Ondeiam, somem-se
Num Universo
Paradoxal
Aproveito-me e
Traduzo a ele
O que vai em mim
Responde-me o mar
Com o ignoto
O trascendental
Finjo entender e
Fujo depois
Num vôo cego
Precipitando-me
Por entre as estrelas e
Brincando
Afundo-me
De quando em quando
Nas profundezas
Do vazio oceano
Adimensional
Depois passeio livre... Livre...
Sou pássaro galático
Espectro imerso
Nas águas do vácuo
Do cuspe
D'algum deus desconhecido.

Casamento de Bento



Compadre bate a zabumba,
Toma tento xexelento,
‘Tamo na casa de Bento,
Pra tocar forró e zabumbar,
Deixa a morena de lado,
Não é hora de namorar.
Zabumbeiro vamos tocar,
Bento é cabra nervoso,
Tem parte com o tinhoso,
Tu não vai querer apanhar.

Sanfoneiro puxe o fole,
Casamento pé-de-serra
É coisa de perder a goela.
Comadre de perna mole
Só se tu puxar o fole
E o zabumbeiro zabumbar.
Começa o empurra-empurra,
Hoje ‘tá casando Bento,
Cabra muito violento,
Vixe, não quero apanhar!
Deixa a morena de lado,
Não é hora de namorar.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Resistentes

Resista
É dado ao homem resistir

Resistir ao dia
Sobreviver à noite

Por isso resista

É belo resistir

Faça-se resistência
E seja resistência
Das mais puras

Resistência só e para si
Não serve: é egoísmo
Resista em nome
De seu semelhante
Em favor da Justiça
Em favor da vida
Mesmo que isto
Possa lhe trazer a morte


De resto, a vida sem resistência
É o mais puro morrer
É derreter-se num cemitério
É apodrecer-se sem saber.

Mas foi assim


Lembrei-me outro dia

É... Foi exatamente noutro dia



Que de tão distante nem

Mais ousava lembrar



Mas foi assim: seu corpo

Nu estendido na cama



E um lençol branco, finíssimo,

Desenhando todos os seus contornos



Mas foi assim: uma luz mortiça

Dava-lhe o aspecto de estátua grega



E um calor dos infernos

Colando o lençol em seu corpo



Você levantou-se, sorriu,

Enrolou-se no lençol e foi ao banho



Mas foi assim: uma tarde de Verão

Em que seu corpo era estátua de mármore.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Em nada

Às vezes fico com os olhos perdidos
Perdidos por aí
Você fala, fala, fala...
Da roupa, da festa, do dia
E eu nada escuto

"No que você está pensando?"

Olho para você e nada digo
A avó doente
O irmão imprestável
O limão e a cachaça
A vida e a morte
Um cachorro
Ou um filho

"No que você está pensando?"

Olho para você e nada digo
E rio no meu rio interior
Que vai da fonte
E corre além
Além de mim, além

E respondo:

"Nada. meu bem, em nada"

E no outro dia
Um poema sonhado
Surrado e pensado
Clava-se num papel amarelo

"Nada, meu bem, em nada".

Soluços menores

Os Caprichos de Paganini
Correm pelas cordas
Do violino do homem tísico

O arco desce e sobre
No violino surrado

Um Ré dissonante

Ele pára, arruma a casaca
E começa do Capricho primeiro

O homem é um espectro
E um agudo infinito
Canta-lhe todas as dores

Donde vem este homem
Que mora num quarto de pensão?

Em tons graves
Agora o violino chora
O homem é apenas um braço
Um arco sobre si mesmo
Um capricho arcado
Sem destino
Sem endereço

Lá fora, a Lua não aparece
E o tísico, tosse, cospe
E repete o exercício
Eterno: Lá, Lá, Ré...

Os pensionistas estão irritados
Todos querem dormir
E o tísico continua
Mais um Capricho...

Duas da manhã
O tísico parou
A Lua apareceu
E uma tosse terrível
Toma a pensão
Tosse, tosse, tosse...

O dia é claro
O tísico silenciou de vez
Nada se expressa em som

Abro a janela
E o rabecão
Está encostado na porta
Sei o que aconteceu:
O tísico executou
Seu último Capricho
E eu, tísico d'alma,
Dormi e, desgraçadamente,
Sonhei todos os meus caprichos
Em soluços menores.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Espanto e susto


Um dia para nada fazer...
Olhar para dentro de si
E morrer de espanto e susto.

Um dia para nada fazer...
Ficar calado e escutar
O eco do que não foi dito.

Um dia para nada fazer...
Deixar o sangue estancado
Para não mais de amor sangrar.

Um dia para nada fazer...
Correr mundo sem sair do lugar,
Ir adiante num instante,
Misturar-se ao passado
E morrer de espanto e susto.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Amuleto


Tens em teus olhos a bondade das ninfas
E n’alma a maldade dos demônios,
Assim, vives a enganar quem a ti se chega,
Mergulha na luxúria e deslumbramento.

Mas, saiba que ganhei dos deuses um amuleto
Que me protege deste teu desejo
Forjado no fundo da Terra,
Arma afiada que desferes a sangrar espíritos,

E que a meu peito não arranha e fere.
Vai... Vai e busque quem possas ferir,
Deixa-me aqui neste bosque encantado,

À margem do lago a esperar Caronte.
Vai... Já escuto Sibila a me dar destino
E nele, por fortuna, tu não estás.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Do jeito que o diabo gosta


Você está do jeito
Que o diabo quer e gosta!
Arrepio em minhas costas,
Quando sinto no peito
Todo o carinho feito
Pelo amor que a gente tem.
Feito na rede ou no chão,
O amor é o amor que se tem.
Vem, me deixe no jeito,
Sem você eu sou ninguém,
Ando que nem sujeito
Que tá co’a alma no além.
Você está no jeito
E lhe quero muito bem.
Amar é meu defeito
Mas só se ama o que se tem.
Vem meu amor pro meu peito
Vem, vai, vem, vai, vem, vai, vem...
Quero-lhe a noite toda
Nua, molhada e doida,
Me dá um beijo meu bem.


Este é um Gabinete Repetido, muito antigo em nossa língua, também conhecido por Martelo Agalopado ou Galope Gabinete, que tem por base uma sextilha de setissílabos, na disposição ABBAAC, seguida de versos de metro variado; o último verso da sextilha (C) tem a rima em "em", repetida a seguir alternadamente. Os cantadores nordestinos costumam terminar os dois últimos versos em "Quem não canta gabinete / Não é cantor pra ninguém".

Mulher Rendeira (*)



Olê, sinhá bonita,
Olê, gente de casa,
Nada voa sem ter asa,
Só o amor é que isso faz,
Co’ele voa mocinha e rapaz,
Voa comadre e compadre,
Co’a benção ou não do padre,
Pra mode de namorá.

Olê, mulher rendeira,
Olê, mulher rendá,
Me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorá,
Chorou por mim não fica,
Soluçou vai no borná.

(*) Estrofe composta de uma oitava de sete sílabas, de rimas emparelhadas e alternadas, acompanhada de seis versos da canção popular Mulher Rendeira, cantada em estribilho, perfazendo um total de quatorze versos. O gênero foi criado pelo cantador Cesanildo Lima, cearense, de Canindé.

Canção de nossas vidas

É impossível esquecer o passado,
Fazer de conta que nada nos valeu,
Que nossas vidas são tristes legados,
Que o encontro de hoje jamais será adeus.

Queria voltar no tempo para buscá-la,
Em longos abraços, nos seus loucos beijos,
Ficar assim e nunca mais deixá-la,
Mas o tempo não escuta os meus desejos.

É impossível esquecer o passado,
Fazer de conta que nada nos valeu,
Que nossas vidas são tristes legados,
Que o encontro de hoje jamais será adeus.

Queria voltar no tempo para buscá-la,
Em longos abraços, nos seus loucos beijos,
Ficar assim e nunca mais deixá-la,
Mas o tempo não escuta os meus desejos.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Sem juízo

Madrugada de Segunda-feira,
No céu, uma única estrela.
Nuvens baixas. Um avião passa.
No alto, no morro,
A casinha ainda de luz acesa
E ao lado, um grande pinheiro
Testemunha a Segunda-feira,
A casinha, o avião e a estrela.
Mora lá, na casa, uma menina,
Moça já e que perdeu o juízo.
Ela passou há pouco por mim
A andar como bêbada,
Com o braço retorcido,
E o doce sorriso dos dementes.
Ria com doçura,
Ria para a estrela
Ao senti-la tão só.
Ria para as nuvens
Porque pareciam patéticas naquela noite
– Ora bolas, nuvens que não chovem
Não têm juízo e propósito! –.
Ria para o avião de barriga cheia,
Cheia de gente sem asas e que voa.
De repente a moça notou que a reparava
E parou de rir,
Talvez soubesse que ali estava
Alguém que perdeu o sentido do riso
E que para recuperá-lo
Precisaria também perder o juízo.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Distante

Há tanta distância entre nós...

Não. Não são os espaços,
Os mares, os caminhos...
Digo do tempo que nos distancia,
Do tempo que nos esqueceu.

Nada sobrou de nossos risos,
Nada além de um eco
Numa manhã de Domingo,
Tão longe no tempo,
Que o próprio tempo,
Que gosta de cores desbotadas,
Não ousa misturar a luz e o brilho
Daquilo que nos fez em felicidade...

Daquelas manhãs em que suas mãos
Finas, brancas e em concha,
Dormiam e pediam o sono dos anjos...

(Lamentava-me nessas horas ao ver
Suas pálpebras fechadas,
Cercadas por negros cílios,
Negando-me o azul roubado aos céus.)

Foram-se esses dias,
Foram-se os risos...
E hoje, meus olhos
Fixam-se num ponto constante
E, em miragem,
Dão-me seus olhos
Que o tempo traz de tão distante.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Desalento


Às vezes oiço rir, é’ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!

Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entontecida…
O roxo de maus lábios é saudade
Duns beijos que me deram n’outra vida!

Ei não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
Que só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!

- Florbela Espanca

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Dá-me a mão

Ao Tasso de Silveira.

Dá-me a mão e dançaremos,
dá-me a mão e me amarás,
Como uma só flor seremos,
Como uma flor, e nada mais...

O mesmo verso cantaremos,
o mesmo passo dançarás.
Como o trigo ondularemos,
como o trigo, e nada mais.

Te chamas Rosa e eu Esperança
mas teu nome esquecerás,
porque seremos uma dança
na colina, e nada mais.

- Gabriela Mistral
(Tradução José Fernando Nandé).

As migalhas

Senhor, vos agradeço
Eu, aqui, fazendo versos
E 1 bilhão de meus semelhantes na fome.
A mesma fome que mata no mundo
Uma criança a cada 5 segundos.

Vos agradeço, Senhor,
A Vossa piedade
Para comigo
E Pelas migalhas
Mergulhadas no vinho misto de sangue
Que me sobraram
De Vossa última ceia.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Horóscopo

Antigos orbes que no céu morto gravitam,
Tolas esferas que nos dão triste destino
Que a terrível solidão dos sóis orbitam,
Que, como eu, da imensidão amam os abismos,


Quais são as forças que me têm e determinam?
De qual zodíaco veio-me signos tão cretinos
Que me dão ordens e ao inferno me atiram
Em pesadelo, infortúnio e desatinos?


Serão os deuses autofágicos e bárbaros
Que me habitam e me dão da flor a dor
De tê-la por lapsos de tempo tão avaros?


Serão os gritos dos que sofrem o pavor
De viver sem saber de si o significado
E que, na morte, o escuro é a única cor?

Livro fechado

Um livro fechado
É um beijo querido
E jamais recebido.
É um beijo prometido
E nunca dado.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Para lembrar: Gabriela Mistral



Decálogo do artista
I. Amarás a beleza, que é sombra de Deus sobre o Universo.
II. Não há arte atéia. Ainda que não ames o Criador, o afirmarás criando a sua semelhança.
III. Não darás a beleza como falsa isca para os sentidos e sim como o natural alimento d’alma.
IV. Não serás pretexto para a luxúria nem para a vaidade e sim para o exercício divino.
V. Não buscarás no mercado nem levarás tua obra a ele, porque a beleza é virgem e o que está no mercado não é ela.
VI. Sairá de teu coração o teu canto e ele te fará purificado. VII. Tua beleza se chamará também misericórdia e consolará o coração dos homens.
VIII. Darás tua obra como se dá um filho: tirando sangue de teu coração.
IX. Não te será a beleza o ópio que entorpece e sim o vinho generoso que te levará para a ação, pois se deixas de ser homem ou mulher, deixarás de ser artista.
X. De toda criação sairás com vergonha, porque foi inferior ao teu sonho, e inferior a este sonho maravilhoso de Deus, que é a Natureza.

- Gabriela Mistral
(Tradução José Fernando Nandé).

Tolice

Estava tão perto de ti
E sentia a ventania
Sem saber que estaria
Tão perto de quem perdi.
E o vento nada me disse
Teus olhos nada me contaram
Tuas mãos de mim se afastaram.
Amar a ti, tola tolice.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Cantoria de Santa Isabela (Com invocação falada)



Oh! Santo Deus das alturas,
Minha reza quero mostrar
E ao Senhor desejo louvar.
Cantai aos céus a criatura,
Pecador e penitente:
Que a memória não me falte,
Salve-me Deus nas alturas!

Agora que estou bento,
Com meu Deus reconciliado,
Deixo a conversa de lado
E sem arrependimento
Devo ir trovando agora
O mal deste mundo afora,
Amargura e sofrimento.

Era moça donzela e bela,
Nascida em berço dourado,
Mas quis o cão amaldiçoado
Desgraçar com Isabela,
O anjo na terra sem asa
Que dorme hoje na capela.

Aconteceu no alvoroço,
Na época do imperador,
Em que negro tinha feitor.
Era num domingo, seu moço,
E apareceu lá no lago,
Da Fazenda dos Forcados,
Um pau-mandado e jagunço.

Isabela ali se banhava,
Pura, não tinha maldade.
Ela não sabia da verdade
Que o destino guardava:
Da moita pulou o jagunço,
Apertou-a pelo pescoço
Até que, morta, não gritava.

Depois de vê-la ali caída,
O jagunço se apavorou.
Dizem até que se enforcou,
Pois do remorso não há saída.
E hoje o povo vai à capela
E reza à Santa Isabela,
A virgem que perdeu a vida.

Oh! Santo Deus das alturas,
Oh! Meu Cristo, Senhor e Rei,
Minha história já contei;
Cantai aos céus a criatura,
Pecador e penitente:
Que a memória não me falte,
Salve-me Deus nas alturas!

Galope à beira-mar

O verso feito no galope das ondas
Tem o teu cheiro, tem sabor de teus beijos,
Vontade, amor, desespero e desejo.
Queria mais do que queria ficar amando
A tua imagem no espelho da lua vagando
Suave como vela soprada devagar
No fraco balanço da onda a chorar
A tua despedida, teu choro e teu adeus.
Mas, que sonho posso ter nos poemas meus
Se longe estás do galope à beira-mar?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Saudade

Por mais que se tente ter no coração
A negação do lusitano sentimento,
Daquilo que vai no peito guardado,
De modo que a vida pareça ilusão,
Ou uma coleção de tolos momentos,
Não há como se livrar do vento,
Que tira o pó da memória
E expõe da dor o atrevimento.
Por isso, canto e digo por todo canto.
Que não há caminho no peito,
Que não dê em triste lembrança,
Tão triste e de tristeza feita,
Que lhe damos outro nome,
A juntar silêncio e ausência:
Apenas Saudade, Saudade apenas.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Martelo paranaense

Este é um assunto para se falar,
Confessar pro padre e pedir conselho,
Por que na terra dos pinheiros
Não se canta cantiga de aboiar?
Não se canta cantiga pra igualar
Co’as cantigas do vaqueiro cearense,
Co’as cantigas do gaúcho riograndense?
Se já existe o martelo alagoano,
Por que não malhar poesia martelando
Pra ter o martelo paranaense?

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Cantoria da viola velha


Nem todo verso é repente,
Nem todo amor vigora.
Chora viola!

Sinto que quanto mais velha
Mais a minha viola sente
Na tristeza de uma toada
A cantar mágoa da gente,
Numa cantiga que é de longe
Cantada neste repente.

Nem todo amor vigora,
Nem todo verso é repente.
Chora viola!

Minha viola não mente,
Dizem que foi afinada
Numa afinação diferente,
Pelo choro de minha mãe,
Na dor que toda mãe sente
Ao sentir o filho partindo
Com a viola e para sempre.

Nem todo verso é repente,
Nem todo amor vigora.
Chora viola!

Toda árvore foi semente,
Toda mágoa faz chorar,
A viola é parceira,
Sente o que o cantador sente,
Pode ser dor de covarde,
Pode ser dor de valente.

Nem todo verso é repente,
Nem todo amor vigora,
Nem toda lenda é história.
Toque a vida para frente,
Toque a velha viola
Sentido o que a gente sente.

Nem todo verso é repente,
Nem todo amor vigora.
Chora viola!

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Martelo da moça solteira

Toda moça que sonha ser mulher
Quero cantar neste martelo
Curtinho, mansinho, agalopado.
Não se mexe doce sem colher,
Do fogo se sai queimado.
Veja que nem todo diabo é sogra,
Mas não esqueça que do diabo é a obra
Que fez Eva padecer no Paraíso,
Que fez até padre perder o juízo
E nora tonta assobiar na cobra.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Apinchado

Andar na chuva e descalço...
- Não se apinche, menino!
Tem caco de vrido n'água,
Corta o pé, descomungado!

Namorar menina-moça...
- Não se apinche, menino,
Amarre o burro noutra moita.
Seu delegado está de zóio,
E o pai dela, Virge Mãe,
É marvado que nossa!

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Casa Estrela

O nome fazia-se bonito e imponente
- Casa Estrela, Secos & Molhados.
Era de Antônio e João
(Seo Antônio e Seo João).
Um balcão enorme,
Com bacalhau salgado,
Sardinha na salmoura,
Pedra de rio de peso para o papel,
Corda para o poço,
Rolo de fumo "Tietê",
Enxada Duas Caras,
Querosene Jacaré,
Maizena, azeite de oliva,
Grão de bico,
Feijão e arroz a granel.
Seo Antônio com a caneta atrás da orelha,
Vendia, anotava no caderno, vendia.
Seo João lidando com a máquina de contas
Girava manivelas, para frente e para trás,
Jamais errava número, a vida se contava em menos e mais.
Sim, havia uma portuguesinha
- Menina filha de Seo João.
Aliás tudo ali era português,
Até o barbante que vinha nas mercadorias
Embrulhadas em velhos jornais japoneses.

Voltei lá dia desses, estava de passagem.
O armazém está naquela mesma esquina,
Seo Antônio não mais.
Seo João, velhinho, ainda trabalha
- Não vi sua máquina de calcular
Nem a portuguesinha.

Meu desejo, o que me movia,
Era encontrar um velho menino ali.
Tudo estava quase igual,
As velhas xícaras de porcelana barata,
O ferro de brasa para passar roupa...

Aperto danado no coração...
A certeza de que toda a infância
E o velho menino
Estão empacotados e perdidos,
Ganhando pó e dó,
Nalguma prateleira da Casa Estrela.

Tardes de Maringá


Era assim
Tardes quentes
Faca jogada no centro do redemoinho de vento
E sebo nas canelas porque ninguém queria ver o tinhoso


Tardes quentes
E toda preguiça do mundo cabia na sombra da mangueira
Era ali que todo menino sonhava


Tardes quentes
Roubar goiaba tinha lá seus perigos, galho liso e tiro de sal
Roubar beijo da vizinha também, bem escondido, para o pai da moça não desconfiar

Tardes quentes
A bola de meia sumia sob nosso pés nus e pingávamos suor
A bola de capotão era luxo, só para o jogo de domingo

Tardes quentes
Banho no ribeirão só escondido da mãe e matando aula
A maldade era uma árvore que ainda não havia florido


Tardes quentes
Doce de tacho, ralar milho para fazer pamonha
Buscar açúcar na venda e ver o mundo no cartaz do cinema

Tardes quentes
O pião que rodava na palma da mão
Na roda, as meninas giravam e não cansavam de maltratar o gato de dona Chica

Tardes quentes
Que anunciavam as noites de lua, repletas de vaga-lumes, mariposas
E que nos traziam o nosso único e verdadeiro medo: assombração, alma penada

Era assim
Tardes quentes em que a vida parecia ser tão boa e simples.

Sonho bom

Queixas que sou calado,
Mas saiba que ao teu lado
Calo-me para não acordar.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

H202

Amar inda o que já foi amado
É derramar na mesma ferida
Litros e litros de água oxigenada.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Presente

Ausente de mim mesmo
Ando pela cidade a esmo
A sentir-te presente.

Noite de São João



Quisera ver-te
Nesta noite em que a Lua fica maior do que a Terra e mesmo assim faz parada em teus pequenos olhos noturnos e de estrelas eternamente enfeitados

Quisera ver-te
Nesta noite em que o orvalho desfolha minha alma e que depois, no seco jardim, em gota, torna-se desolada lágrima na solitária roseira que nunca gerou sequer miserável rosa

Quisera ver-te
Nesta noite de São João, coberta com o brilho das fagulhas da fogueira que ardem no meu espírito e ao meu desatino servem

Quisera ver-te
Nesta noite em que meu destino chora em oração e suplica perdão por saber-se perdido e a ti, em vão, fadado em desejo e pecado

Quisera ver-te
Nesta noite em que meu coração pulsa em angústia por sabê-la docemente impossível e por isso já vestida de toda saudade que se enfeita com os longos laços da despedida

Quisera ver-te
Nesta noite, santíssima e sem pudor, sobre o cansado andor e carregada por toda essa devota gente, a cantar as cantigas profanas que por ti, em andanças, eu hei cantado.

Bacanais

Nossos pensamentos são do pecado
Pecado mortal, é bom que se diga
Vivem em bacanais neuroniais
Em incestos, idéias gerando idéias
E matricídio, descartando idéias
Em infantícido, eliminando idéias nascentes
Em parricído, zombando do pensador
Porque nunca terminam o caminho
Sem a próxima idéia
Sem a próxima pergunta
Que exigirá outros bacanais
Outra luta de aparentados
Para se chegar em resposta alguma.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A morada

Tinha os olhos presos no infinito.
O gemido era a voz marcada em ais.
Os gestos, poucos e sem estudo,
Expressões únicas da alma alienada.

Vivia, portanto, sem se saber,
Para longe do alcance do olho,
Para adiante do alcance da fala.
Noutro mundo deveras habitava.

Num dia deu um grito medonho,
Terror mesmo, o mais profundo.

Não sei que noutro mundo viu,
Não sei que o trouxe do nada.

Mas sei que até hoje está paralisado.
É um corpo que a própria alma esqueceu.

Aquele foi seu momento único aqui deixado,
O medo manifesto, seu grito desesperado,
Que fez morada no hospício e lá permaneceu.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Sonhos


Dormiu para sonhar
E não se viu nos sonhos
Não mais dormiu
Não mais sonhou
E viu que estava morto.


Entrou na fábrica
Bateu o cartão
Bateu ferro
Apertou parafusos
E viu que estava morto.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Preguiça

Acordei indisposto com a vida
Serei preguiça nas próximas 24 horas
Amigos
Não me telefonem
Não queiram saber como vou
E se preciso de alguma coisa
Sim, preciso e desejo o silêncio
Mas, o silêncio que não incomoda
Não quero o silêncio das lembranças
Não quero o silêncio dos amores perdidos
Não quero o silêncio dos sonhos mortos
Quero o silêncio que se esqueceu de tudo
Pois estou indisposto com a vida e
Viver, às vezes, nos dá preguiça.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A vida dos santos

O livro
Falou-me da maldade dos homens,
Das crueldades e tudo que já sabemos.
Coisa medonha, coisa medonha!
Deus meu, sei que causo incômodo
A Vossa solidão eterna:
Mas, tenho notado
Que este espetáculo repetitivo
Vos deixa distraído,
Além de ser uma boa maneira
De testar a fé dos amigos!

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

As cruzes do caminho


A cruz na beira da estrada
É a memória de alheia jornada.
Foi ali que alguém deixou a vida,
Foi ali que alguém virou saudade.

Assim, prosseguimos viagem,
Deixando muitas cruzes pelo caminho,
São nossas memórias, nada além,
Até viramos saudade também.

Viajante, no prosseguir é importante,
Ao cruzar com a solidão da madeira vazia,
Fazer o sinal da cruz,
Rezar ao pé da cruz,
Pois de cruzes são feitos os nossos dias.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Dos perigos de ser só

Deve ser pavoroso encontrar-se
Consigo, sem ninguém, a sós de verdade.
Creio que o hospício está cheio dessa gente
Que se encontrou.
A realidade, o eu nu e só,
A consciência de si,
Enlouquece.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O crime do capiau

Matou a Língua Portuguesa
Na mais cruel e cru crueldade.
Com uma faca desossou os "esses".
A pauladas trocou os "eles" pelo "erres".
Depois, cortou em pedacinhos
A Gramática e o Aurélio.
Feliz, lavou as mãos no rio,
Esticou a vara de pescar,
Inclinou o chapéu de palha sobre a testa,
Acendeu o "paieiro"
E lascou assunto a seu cão perdigueiro:

"Eita, vida amargurada, sô,
Não matei ninguém não,
Só dei sumiço na soberba,
Bestagens dos bestuntos,
Nas coisas de nego metido!".

O cão olhou para o capiau
Abanou lentamente o rabo
Como se matutasse
E latiu duas vezes.

Na conversa da cachorrada
Que vive nos matos,
Na língua deles,
Que não tem gramática,
Dois latidos significam
"Ocê tá certo memo!".

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O que se leva dessa vida

O amor varia em sentido,
Direção e intensidade.
É um vetor, dirão os físicos.
A flechinha do Cupido,
Dirão os tolos apaixonados.
Mas medi-lo, quem pode?
Não há ciência no amor,
Não há nada que o explique:
Ama-se e pronto.
De resto, nesta vida besta,
Nos sobra pouco.
No final, no acerto que é certo
Com nós mesmos, ali,
Antes do último suspiro,
Saberemos da única bagagem
Que nos será permitida.

Não é a glória,
A vaidade dos homens,
Nem o dinheiro
E também não é
O lamber no próprio umbigo.

É a saudade do que foi amado,
O amor tido e havido.

Por isso vou contente,
Já com os braços cansados.
Amei quem quis um dia
E noutros dias fui amado,
Pois é assim que funciona
Este mundo de amalucados.

Mas, Senhor, dúvida tenho
E pela dúvida sou consumido:
Se vou seguir caminho e pedir
No Céu direito à vadiagem,
Quem é que vai me ajudar
A carregar no peito tanta bagagem?

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Penumbra

Apago a luz
A claridade me incomoda
Quero a penumbra
E o que ela guarda
Saudades muitas
Vontades muitas
Detalhezinhos esquecidos
Ditos ao pé do ouvido
Entre dois copos de vinho
Nada além disso
A luz me mostra o hoje
Quero o ontem
E para tê-lo
Tenho que me escurecer.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Versos livres


Há aqueles caídos do Céu
Há aqueles no Inferno moldados
Há versos de todo tipo
Que, porém, precisam ser talhados

Pode ser um verso medido
Na métrica de Vergílio ou
Na tristeza de Ovídio exilado

Para o verso não há modelo
Pode ser um verso com rima
Sem pé, sem ritmo, sem apelo

Pode ser um
ver
so
caído
e
Tor
to
Feito e maltratado
Rabiscado e desfeito

Não é bárbaro rimar no verso paixão,
Alegria que se faria e dor que se tem,
Do coração vale o que está guardado

Lembre-se, não há verso amarrado
Mesmo que nascido na academia
Mesmo que vivo na voz do matuto

Verso também não carece de tamanho
Pode ser gordinho como um hipopótamo
Pode ser denso como um paralelepípedo

Verso não precisa de salamaleques
Ponto, ponto e vírgula, hífen, coma
Pois, a pausa feita é d'alma a oferta

Certa coisa é fundamental e certa
Para se ter um verso verdadeiro
Há de se ter um poeta por inteiro
Que faça da língua canto e alerta

Por isso, aos novos poetas digo

Cantem bardos escravos
Cantem homens perdidos
A vida só nos reserva os cravos
Que vazaram as mãos do Cristo

Aqui expiamos nossos pecados
Aqui exercitamos nossos vícios
No verso, que é a cruz do apenado,
Ofício belo, alegria e sacrifício.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Mundinhos

São tantos os meus mundos
Que perdi a conta e o entendimento
Compreendê-los não sei
E penso mesmo se vale a pena

Aos mundos ofereço a minha ignorância
Assim, com as mãos em concha,
Cristalina, para ser aos golinhos tomada

Tenho um mundo criança
Um mundo inocente e de riso
Que ao longe me vê perdido

Tenho um mundo ausente
Que nele desejei ficar
E lá vai ele... Vai... Tão ontem

Tenho um mundo morto
Que tento em vão ressuscitar
É morto e morto deve ficar

São mundinhos na memória rotos
Lá vai tempo, para que tê-los de novo?

Mas, o que faz caso em mim
O que incomoda mesmo
É saber não ter mundo algum
Com você divido e inventado.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A arte da desconstrução

Mazé tenta encontrar arte na realidade
E encontra,
Na horizontalidade, nas verticalidades
Nas paralelas
Sobrepostas a escombros.
Há beleza no que foi desfeito,
Há simetria no desarranjado.
A arte
É uma desconstrução
Que se reinventa.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

As Parcas na sala de costura


Nona, deusa estranha que a vida tece,
Ganha todos os dias várias encomendas
E quando pica o dedo com suas agulhas
Grita e chora a dor de todos os partos.

São simples encomendas apenas, sem paga,
Sem preço é a vida que pelo seu fio passa.
Chora a mãe de felicidade, chora a criança
Que vem à luz; chora a Parca sua desgraça.

Décima dá tamanho para o fio do condenado.
É triste o labor desta deusa que cose a vida
Em bordado único, sem cor, sempre inacabado.

Chorem as divindades, que se revoltem os deuses,
Que chorem Nona e Décima. Pois não há piedade
Na cega tesoura que a inclemente Morta carrega.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Moda do matuto na quermesse

Veja a lua imensa, quanto brilho nela vai.
Vou sair hoje, a benção mãe, a benção pai!
Dia de quermesse e de muita prece,
Quero encontrar Maria Francisca,
Moça bonita e sem namorado,
Meu Santo Atonio, que pecado:
Bonita de fazer doer, linda de adoecer.

Coração sozinho não fica no cercado,
Abraço só é bom, se for apertado.

Sei que tem muito mocinho letrado
Que me acha caipira e abestado.
Tá certo, sei que não sou estudado,
Mas isso aqui também sei,
Que há coisas que o matuto valoriza na vida:
Ter no peito sempre um canto para os amigos,
Uma sandália velha para descansar os pés,
E para acalmar o fogo, os carinhos da mulher.


O que interessa ao roceiro é o roçado,
O que interessa ao amor é o amado.

Maria Francisca está sem namorado
Bonita de fazer doer. Linda de adoecer.
Moça solteira- Santo Antonio, que pecado!

Coração sozinho não fica no cercado,
Abraço só é bom, se for apertado.

Iracema nua

Iracema perdeu o juízo
Anda nua por aí
Corre atrás das crianças
Entra nos matos
E grita desaforos.

Iracema perdeu o juízo
Desilusão, dizem
Sei lá, ninguém a conhecia
Apareceu aqui num dia
E foi ficando
A correr pelas ruas
Nua, em giros de cigana.

O menino vê Iracema nua
E sua mãe grita:
"Fecha os olhos, morfético!".
Mas o menino não os fecha:
"Mãe, quero ver como é a desilusão!".

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Encantos

O que me encanta não é saber que vai longe a estrada
O que me encanta, e o que conta mesmo, é a paisagem

O que me encanta não são os livros velhinhos e fechados
O que me encanta é saber que o mundo está ali guardado

O que me encanta não são nossos corações num tolo bater
O que me encanta são nossos corações no mesmo compasso

O que me encanta não é pensar que estou sempre no meio
O que me encanta, e o que conta mesmo, é não saber o desfecho.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Canção Peregrina


À frente, lá onde a vista se perde
O caminho que advém é impreciso.
Mas, só Deus e os anjos sabem
Que para sentir o que agora sinto
O quanto foi preciso caminhar.
Acertei o passo, andei mansinho,
Às vezes, com o corpo aprumado,
Às vezes, com o coração avoadinho.

Sinta as dores e quanta poeira
Que sobre os meus ombros trago:
E estas mãos cheias de adeuses
E nos olhos quantas saudades.

Mas, deixe que eu lhe diga
Baixinho, no ouvido,
Para que ninguém dele possa escutar:
Já tive medo! Medo de continuar.

Hoje, sei que do havido só o silêncio fica.
No fundo, todo medo é medo de sofrer:
O silêncio é o solitário vagido grito
Do destino, canção fúnebre do viver.

(Tolo, penso que a felicidade
Um dia pode me ver,
Cruzar meu caminho
E meus lábios de leve roçar.)

Por isso, sigo adiante
Porque sempre é preciso
Dar sentido a essas pernas
Imprecisas no caminhar.

Sei que estou cansado
E que um dia devo parar
Mas, permita-me, Deus meu,
Entre um passo e outro, rezar.

Rezar apenas... Apenas rezar...

Rezar pelos meus inimigos,
Pelo que ignoro e não sei,
Pelo que vi de maldade,
E por tudo que já chorei.

Permita-me continuar
Ainda hoje, meu Deus,
Seguindo por este mundo,
Moribundo e gasto pela vida.

E quando meu corpo ganhar descanso,
Ou quando minh'alma for desatinada,
Que o Senhor seja sempre o bom amparo
E bendita luz na noite da nova jornada.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Última essência

"Oh, meu deus, minha flor de lótus!...
por gratidão vou partir...
Meu desejo é banhar-me diante de ti."
(Fragmento de poema anônimo egípcio, 1.000 a.C.)


Os poetas nasceram antes das línguas
Porque o homem queria entender o sentir
Por isso, há milênios pelejamos descrever
Aquilo que não se descreve
Porque não há palavras novas
Não há expressões certas
Que medem e pesem nossas almas.

E mais mil anos passarão
Outras flores hão de vir
A rosa, a flor de lótus
Na flora do bem, a flor do mal
Espelhos toscos, foscos
Das gentes, do amado
Do sentimento odioso
Do desejo não explicado
Do que não pode ser dimensionado
E que não se submete a esquadros.

E que venham mais mil anos ainda
E que o poeta desenvolva outras línguas
Precisas, quiçá pretensamente exatas
Tudo isso não passará além do nada
Porque a poesia é reticências
É o desejo que não se acaba
Eterna e sempre ao incompleto atada.

E que venham mais mil anos ainda
Um milhão de poemas escritos
Um milhão de amores encontrados
E mesmo assim, embora tenha lutado,
Poeta algum terá decantado
No destilar do seu canto
De amor, do doce sentir,
A última e bela essência
Da alma leve
Em seu coração pesado.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Paisagem

Faço hora e entrego-me à preguiça
Olho pela janela e o mundo se faz velho
Pinço telas vivas, árvores, jardins
Pássaros, folhas caindo, mesmices
Espero. Esperar é o preço do viver
Vozes, risos, conversas passam
Nada entendo, nada quero entender
A preguiça exige esquecimentos
Desentendo-me, esqueço-me
Transmuto-me em dor
Pois agora sou a paisagem
Deste mundo velho, das árvores,
Das mesmices, dos jardins,
De mim e dos passarinhos.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Balaio do tempo



Gosto dessas folhinhas de barbearia
Elas guardam o calendário
O que já foi e o que há de ser
Num susto, suspiro último
Feito navalha na jugular
Antes do próximo fio de barba crescer

Mas, o que eu queria dizer
É que eu gosto mesmo
É de suas antigas vulgares pinturas
Impressas, estáticas,
Paradas, mudas,
Sem nada marcar
Sem nada delinear
A não ser as paisagens

Gosto dessas folhinhas
Que marcam o tempo que passa
Numa gravura do século passado
Na parede da padaria
(Deus meu, dai-nos o pão nosso de cada dia!)

Gosto dessas folhinhas
Com propaganda do açougue
Da farmácia e da tabacaria
Elas trazem imagens
De um tempo que não foi
Rios que não correm
Ursos que não se mexem
Sol que sempre brilha
Árvores que, mesmo no Outono
Não se desmancham em folhas

Gosto dessas folhinhas
Com cães e gatos
Dividindo o mesmo balaio
Ou crianças de bochechas rosadas
Fazendo uma algazarra sem gritos

Gosto dessas folhinhas
Dessas que enfeitam
As cozinhas das vovós
E que, de tão boquiabertas,
Com o passar do tempo
Acabam em depósitos de pó.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Quem lhe prendeu, Menina?


Tenho pena de você, minha menina,
Que faz da solidão irmã e sina.
Que triste pássaro este que não voa,
Bem acostumado ao medo e à prisão.
Vi você, menina, solta em finais de tarde;
Que nuvem escondeu o caminho
De sua alegria, de sua louca vontade?

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A doença do verso

De vez em quando, poeta,
Só para justificar a lida,
Deixe seus versos
Ficarem doentes.

Doentes de amor.

Poeta que disso não fala,
Que sobre o amor não escreve,
Não é poeta, é um escrevente
Arranjador de sílabas.
Tão vazio... Tão demente.

O amor é a poesia.

No verso, na entrelinha,
Mesmo que não aparente
O amor há de ser presente;
Mesmo que desta doença
O poema não experimente.

Remansos

Quando a noite chega
Meu coração em paz se faz
E tu me abraças
E tu me beijas
E comigo ficas
És a minha canção de ninar
Que me distrai a madrugada
E teus braços são remansos
Que tiram-me do calor da batalha
Aquecem-me noutra peleja
Na luta que vale a pena
Diz-me: "Sou tua"
Transformada no único sentido
Deste coração quase sempre ausente.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Minúsculo instante

Rio de quem se faz ontem.
O ontem já não é mais.
Rio de que se faz amanhã.
O amanhã ainda não é.

O primeiro é o desfeito,
O segundo vai se fazer.

Por isso, sou o agora,
A hora que me fez e que eu faço.
Pois só existo
Neste mínimo
Minúsculo instante.
O ontem é a somatória
Desses mínimos.
É apenas uma conta
Que deve ser atualizada
Nas memórias,
Nas tábuas d'alma.
O amanhã é a conta
De fazer chegar.

O hoje, nesta agora-hora,
É o eu antigo somado a eu:
O que foi e mais este tempo
Subtraído do que será.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Canção dos bytes


Este poeminha temporão
Sairia de dentro da caneta
Mas, o azul da tinta aviza:
- Rabiscarei nada não!

Pobre poeta,
Que tem que domar
Um poema revoltado,
A caneta que não escreve
E apelar para o teclado.

Deus salve o Século XXI
Que nos deu tecnologia
Para escrever
Com as pontas do dedos
Tudo que vai na caneta vazia.

Agora minha palavra
É um aglomerado de elétrons
Na tela do computador.

E minhas memórias
Se gravam em bytes,
Um Giga de horror.

Salve, santa tecnologia!
Pois, pode nos faltar a tinta,
Que nos falte a caneta,
A veterana ponta do lápis,
Mas, pelo amor do bem sagrado,
Que nuca nos falte a dita,
Da nova técnica o agrado,
A sacrobendita eletricidade.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Noite vadia

Atravessei ontem a cidade.
Gosto de fazer isso à noite,
Nesta hora somos inexatos
E inexata a cidade dorme.
Vi um jardim sem flores,
(É Primavera creio eu)
Árvores desfolhadas
E um cemitério sem almas.

(Estendi as mãos,
Buscava estrelas,
E as mãos tornaram-me
Molhadas de orvalho)

A rua, lá do Bom Retiro,
Tinha cheiro de jasmim.
Ao longe o som de um tiro
Tinha a claridão da morte.

(Pelo menos alguém dará vida ao cemitério)

Um cão tentou fazer-me em susto
Latiu, rosnou e depois calou-se.
Com certeza, para ele,
a pena não valia:
Latir para quem,
Se junto de mim nada havia?

Só, vadiei pela noite
Assustando os cães,
A cutucar o céu
Para ver se alguma estrela caía.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Negativa I


Não vagarei pelo mundo
Chorando minhas mágoas
Minhas mágoas chorarão por mim.
Não. Não duvidarei de Deus
Quem sou eu!?!
Deus há de duvidar de mim!
Não. Não serei do todo a parte,
Do início a morte,
A dualidade de mim.
Serei apenas eu,
O espectro do espectro
De uma dimensão ruim.
Não vagarei pelo mundo
Chorando minhas mágoas
Minhas mágoas chorarão por mim.
Não. Não duvidarei de Deus
Quem sou eu!?!
Deus há de duvidar de mim!
Não. Não serei do todo a parte,
Do início a morte,
A dualidade de mim.
Serei apenas eu,
O espectro do espectro
De uma dimensão ruim. . (1994)

Sussurros

Sua voz é vento leve a carinhar a flor
Leve, suave, leve, suave, leve...
A sua voz é o balanço
De alegre criança
Em sua primeiríssima
Manhãzinha de Primavera.

Brinquedo dos desejos doces,
Aquilo que vai entre o querer e o sentir,
Sua voz, brisa mansa, leve vento,
Leva-me adiante
Num rouco sussurro
Para muito, muito além de mim.

Conversa mole


Caronte, prepare o barco
E não conte com minha ajuda
Na vida fui ruim ao remar

Caronte, empreste-me o barco
Quero conhecer este Aqueronte
Já que para adiante não há esperança

Caronte não tenha pressa
Vamos bater um papo antes
Quantos já estão na outra margem? ...

Caronte, não tenha pressa
Não se desgaste, antes ou depois
Será o mesmo trabalho

Caronte, conte-me de Virgílio
Diga-me como anda Dante
E seu anjo beato, Beatriz

Caronte, determinado barqueiro
Faça-me um último favor
Dê-me de comida ao Cérbero

Caronte, atenda-me!
Adiante!! Pois não é pecado
Desejar uma segunda morte.

Estrela desbotada


Vejo a noite estrelada
Concebida por Van Gogh
Quanta verdade
Nessas pinceladas escuras
Curvas, espiraladas
Sobre uma cidade
Sem sentido
Repousando sobre todos
Os fluidos dos céus
Quisera o poeta poder
Injetar cores nos versos
Tudo seria mais inteligível
E os sonhos poderiam
Ser descritos apenas
Num piscar da estrela
Que nunca se deixou pintar
Nem mesmo por Van Gogh.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Estranha


Cadê a mulher que tinha um sorriso ganha-mundo?
Cadê a mulher que tinha os olhos do querer?
Cadê a mulher que vivia dentro de você, mulher?

Hoje, uma estranha dentro de outra estranha
Sem riso
Sem mundo
Sem querer

Cadê a menina que tinha o rosto banhado em orvalho
E que com o algodão das nuvens o enxoval tecia?
Cadê a menina que havia por entre as estrelas
Com os raios de luz o próprio nome bordado?

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

História de Anita

Lá - observe aqui do alto:
Naquele prédio
Levantado no horizonte
Aconteceu uma morte ontem
Sofria dos nervos a mulher
Sofria de viver

Anita teve sono
Ligou o gás
E dormiu
Perto do céu
Perto do horizonte
Naquele prédio alto
Dormiu ontem

Anita tinha seus demônios
Que lhe tiravam o sono
Anita inalou gás
E dormiu como anjo
O gás foi seu calmante

Sinistro avessado

"Este menino é sinistro"
- Esquerdo, para que melhor entendam -,
Disse a velha benzedeira
A sacudir os ramos de arruda e alecrim.

E desde então carrego esta sina
De ser amigo do contrário,
De escrever ao contrário,
De pensar ao contrário,
De querer um mundo contrário.

Do direito sou o avesso
E do avesso a vida faço.

Trago no peito desejos miúdos,
Vontades mudas:
Quero do mar a tempestade
Da onda alegre a vaga triste
E no coração sentir
A intensidade da vida
Até no mais puro silêncio.

Trago isso nas mãos calejadas pelos adeuses,
No rosto, escrito no franzir da testa:
Não há um mundo o direito e o completo
Porque nele tudo se faz torto e metade;
Por isso, sou canhoto por inteiro
Porque sinistro é meu coração, confesso.

A medida das almas

Que tamanho nossas almas têm?

Se no bem,
Abarcam o mundo.
Se felizes,
Abarcam o céu.
Se meditativas,
Abarcam o nada.

Mas mesmo assim, acredito,
Que é preciso uma alma grande
Para do nada se encher
E em tudo pensar.

É isso, a alma se pensa
E este pensar,
Que tudo alcança,
É sua medida.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Pássaros raros


Anoitecido sou forte,
Faço susto aos astros,
Brigo com minhas sombras
E, ao largo, boto a fugir as luzes todas.
Assim cansado, deixo de lado o sono
E em vigília terna, no colo, nos braços,
Envolvo os escuros da noite
Como se fossem pombos,
Pássaros raros
Que, contrariado,
Aos céus sempre devolvo.

Mas, de dia, que desastre sou.
Puro medo; medo e horror!
Cedo, topo e tropeço na luz,
Que em fina réstia
Vaza da janela ao quarto.
Asim, iluminado fica este velho corpo
Cansado e desnorteado
Por não saber você
E de você nada ter provado.


Tivesse prestado mais atenção,
Tivesse no seu coração estado,
Tivesse ido além do permitido,
Entrado em sua alma, amado,
Não sentiria este quente arrepio
De tê-la sempre em pensamento,
chama, eternamente ao meu lado.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O canto das gentes

Poeta, toda vida merece um canto
De amor, de terror ou de ódio...
Às vezes, de felicidade
Ou até de contentamento.

De amor quase sempre falo
Mesmo ao amor que nada consente.

De terror grito pelos fracos
Que morrem de fome
De desamor
De tristeza
E de esquecimento.

Grito depois num canto de ódio
Aos que ferem nossas almas
E aos que fazem desses males
Os deuses de nossos tormentos.

E repito este canto todos os dias
Mantra de todo vivente
Pois quem não ama nem odeia
Pois quem não canta nem sente
É morto em vida, não é gente.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Cantiga para amores assombrados



Todo adeus é de dar pena.
É um esquecer-se triste,
É um esquecer-se sem paz,
Sem contentamento.


A saudade é a alma do adeus;
Da solidão, companheira e tormento.
É ela que nos assombra
E nos põe o medo do esquecimento.

Sou feito de adeuses, arrependimentos
E assombrado por muitas saudades vivas.

Por isso, antes de dormir,
Rezo por quem conheci
No terço da saudade havida.


Depois sonho em tranqüilidade
Ao refazer a vida antiga,
Plena de quem me faz falta,
Cheia de quem me fez sentir
Num adeus triste nova tristeza, saudade.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Canção da sina encantada


Canto todo canto para tê-la,
Encanto, a meu lado.
Busco tanto tê-la minha,
Sabê-la toda na língua
Com gosto de gostosa sina.
Quero sim, você me ensina,
Amar como ama a estrada
O caminheiro.
Quero sim, você me ensina,
Amar o oceano
Como ama o marinheiro.
Canto todo canto para tê-la
Nesta canção de amor, amada.
Canto tanto para sabê-la
Dentro do peito, no coração guardada.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Noites de tempestade


E veio a tempestade...
Os trovões,
Os sons todos
Do céu furioso.
Madrugada de terra molhada.
Madrugada de almas aterrorizadas.
Madrugada em que o céu grita.
Madrugada pelo silêncio abandonada.

E veio a calma...
E as breves sonoridades d'água
São o silêncio que pinga entre os pingos d'água.
É quando volta-me a alma...
Meu coração bate triste, suave e
Minha oração se faz silêncio entre suas batidas:
É o mudo aguardar de outras madrugadas,
Sons, trovões e o terror de todas as mágoas.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Requiem para coisa finda


O inverno de 2008 é defunto
E pede flores para enfeitar
Seu túmulo cinza.
Logo, o ano será morto
E nos lembrará
O destino frio
Tão comum,
Tão escuro,
Tão defunto
Quanto este inverno findo.

Lá fora...
Deus meu, o que vai lá fora?
Venta...
Suspiros dos anos meus
Perdidos em invernos
Soltos naquilo que não mais sou eu.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A solidão de Deus

Sois Deus e só.
Ser divino é optar pela solidão.
E de vez em quando este abandono proposital carece de companhia.
Não uma só. Uma alma parece não acabar com Vossa solidão divina.
Almas precisam ser encomendadas no atacado:
Mais de duas mil na guerra da Geórgia,
Centenas de milhares em África,
Purificadas em martírios e sofrimento.
Senhor, quando aprendereis a viver só?

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Um poema só

Ontem fugiu-me mais um poema.
Poemas têm este costume: fogem.
São amantes de uma noite só.
Aparecem, insinuam-se e somem.
Noutros dias, voltam,
Mas fingem não notar seus poetas
Com medo que lhes reconheçamos os defeitos.
Bobos, ignoram que somos fracos em sabê-los
E que os defeitos estão nos olhos de quem olha!
Mas um dia eles hão de voltar...
Como volta para casa a amante querida
Que de tão querida não se acreditava assim.
Hão de voltar...
Como o mar torna à praia,
Como a luz torna ao dia,
Como o sonho torna ao sono.
Estarei pronto, por certo,
Para, no peito, fundo, recebê-los,
Pois sou feito dos beijos destas amantes
Que me abandonaram na noite.
Sou feito de poemas sem tê-los.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A folga de Abuquerque Maria

Maria Cristina Campos Lago Abuquerque
Num dia fazia-se santa e dizia-se Cristina,
Noutro dia soltava-se, corria-se em campos,
Noutro, acalorava-se e alcamava-se no lago.
De Albuquerque também tinha seus dias
E fechava-se numa fotografia amarela e fria.
Reflexiva, Maria Cristina Campos Lago Abuquerque
Jamais quis ser Maria. Pois ela fazia-se outras.
E Maria apenas... É pobre ser Maria.
Num dia, sentiu-se em quentura n'alma.
Santa Cristina correu-se ao campo,
Atirou-se no lago e por desgraça
Morreu-se.
O guarda-vidas Abuquerque Maria
Deu-se folga.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Todo triste

Triste. Já nasci triste.
Como alguém pode ser alegre
Ao sentir-se, todos os dias,
Os dias todos,
Em todas as horas,
Nos minutos todos,
Na totalidade toda,
Neste gastar-se medonho?

Não existo

Você diz que não existo.
Assim, tão simples.

Pois saiba, não existo mesmo!
Nego-me a existir!
E boa parte da Filosofia
Diz que você está certa!

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Sofro de poesia

Não me chame, não reclame, nada diga:

Sofro de poesia e meu coração está ausente.

Falo com você depois de pensar nos tolos

E doces versos que me envenenam.

Sou doente assim desde menino:

Sofro de poesia, meu bem!

Em rezas, benzedeira alguma

Conseguiu tirar-me este quebranto

Soprado por anjos nada santos.

Por isso, dou canto às palavras

E vozes aos silêncios d’almas.

sábado, 21 de junho de 2008

Olhos míopes

Os míopes foram feitos assim
Quase ceguinhos
Quase sem luz
Para não verem o mundo
Do jeito que todos acham que é
Que, em verdade, não é
O mundo é mais
Muito mais do que cores mudas sobrepostas
Mas para vê-lo
Há de se afastar a luz
A luz toda
Toda luz
E trazer para si
A alma das coisas
Feitas em contornos inexatos
Construídas com olhos míopes
Só aí então
Estaremos prontos
Para com o tato de nossos corações
Entender a mudez de nosso mundo.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

PARTITURA PARTICULAR


Maestoso
Canto a música do silêncio
Anotada nos pentagramas
De teus dentes quando me beijas



Molto delicato
No teu peito uma clave
Sugere-me o amor noutro tom
Do silêncio cada vez mais lento



Allegro
Casa de poeta não tem teto
E a Lua dá cor ao silêncio
Do corpo que se retorce



Allegro non tropo
Suave, muito suave, doce,
Dois tons acima, teu silêncio
Desfalecido por sobre minha língua.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A moça no jardim

O jardim está em desuso;
Quem ousa usar o jardim?

Oásis no meio do concreto e asfalto
Por quem espera com seu verde sem fim?

As flores, a grama, os pássaros
Ignoram quem por eles passam
Mas guardam os que por eles ficam.

A moça sentada espera: lê revista,
Fuma cigarro; compenetrada,
Esquece os pássaros, a grama, o jardim.
Espera, espera, espera;
Eis o resumo da vida:
Uma curta espera pelo fim.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Cata-vento


A voz do poeta é irmã do vento,
Às vezes suave como a brisa;
Às vezes ligeira como tempestade.

A nossa voz se faz nos ventos
E sopra, e canta, e leva
Melodias, pesares e pensamentos.

A mão do poeta é um cata-vento
A envolver teu coração no manto
Do querer bem, do querer muito e tanto.


quinta-feira, 20 de março de 2008

Artigos de perfumaria


Sabão de cheiro Lavalma

Shampoo que dê brilho às idéias

Perfume para os olhos

Sais para banhar paisagens.