sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Dona Chica

Sabe aqueles poeminhas
Cantados em canções de roda
Com gatos espancados
Para espanto da Dona Chica?
Pois é, há neles verdades
Que hoje abominamos
Ensinar às crianças.
E por tal razão
Elas crescem tolas
Acreditando que a vida
Pode ser resolvida
Com controle remoto
Ao se apertar um botão apenas.

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Ilustração: "Roda infantil", Portinari.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Picada de aranha

Meu Deus, tanta aranha
Que desejo neste mundo,
Das rubras, negras, loirinhas,
Até as sem pelos, lisinhas,
E logo me deste uma marrom!
De braço inchado pelo veneno,
Pobre e endurecido membro,
Vou urgentemente ao médico...
Mas, Senhor, e as outras?

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Humano

Sois sangue, sois animais
E a história da civilização
Nada mais é do que a tentativa
De negar tão primárias verdades

Por isso, odiamos
Por isso, maltratamos
Por isso, matamos
Por isso, fazemos guerra

Por isso, somos a morte na tocaia
Com nossos caninos limpos e escovados
Com nossas garras de unhas aparadas
Carcarás de panos vestidos a farejar carniça.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Amor inexplicável

Como eu te quis! Como te quis, infeliz criatura
Houve um momento nos meus dias cinzentos
Que ao despertar do sono, ao abrir os olhos
Em mim nada mais cabia além de tua imagem

Foi um amor de se viver abestalhado e anêmico
Não me cansava de ti, de tuas manhas
Ficava sem comer, ficava triste sem te ver
Amei-te exageradamente, desesperadamente

Hoje olho a tua fotografia e tento achar razões
Para tantos desatinos do coração adolescente
E estranhamente não sinto saudade de ti

Tenho saudade apenas de estar apaixonado
E por isso guardo com carinho a tua imagem
É ela que me lembra que o amor é inexplicável.

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Ilustração: Paquera na janela, José Lutzenberger   

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Minha luz procura teus olhos

Sou Diógenes desesperado revirando barris
Num imundo porto qualquer
E nas minhas mãos carrego velha lanterna
Para fazer-te luz nos olhos
Para ver o teu rosto infeliz

Não procuro verdades, há engano nisso
Poetas não querem verdades
Somente os cínicos desejam essas excrescências

Eu, poeta, quero apenas o sonho que em ti habita
Aquele sonho que tu esqueceste
E chama-se hoje irrealizável

Veterano sonho
Posto numa prateleira antiga com a inscrição
"Coisas que me fariam feliz e não dei importância"
Sim, sou tua consciência que chora o não feito

Sim, sou o anjo-demônio que te faz dormir
A lembrar daquilo que tu eras
E hoje não é mais. Nem em luz ou sombra.


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Ilustração: Diogenes sentado en su tinaja. Jean-Léon Gérôme (1860).

A luz e o sonho

Desde criança sempre soube 
que as coisas eram muito mais 
do que aparentavam. 
Na juventude, descobri que a luz branca 
era na realidade a soma de várias cores. 
Hoje, quando falo com alguém, 
tento sentir sua alma, 
para ver quantos sonhos ela tem. 
Não há luz sem cor, não há alma sem sonho.

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Ilustração: Mulher com um Chapéu, de Henri Matisse, 1905

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Poema inacabado

Um dia saberás que aquele poema torto
Tinha o endereço dos negros olhos teus

Aquele frio poema que já nasceu morto
Cheio de curvas barrocas e rimas cruzadas
Foi para ti e para nosso amor nascido capenga

Tinha lá um certo toque de doce ilusão
Falava, por certo, do incerto coração
Manso em suas linhas, nervoso em vontades

Talvez, se tivesse me esforçado
Teria contigo vivido e casado
Sim, teria dado por terminado
Numa contrariedade de dar pena
Aquele torto e maldito poema.


.

Rara

Rara,
Tu és da minha luz
A claridade

Do meu deserto
O fresco oásis

Nos meus dias
Minha alegria,

No meu viver
Minha vontade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Canção da Lua

Amanhã, essa imensa Lua
Vai continuar seu destino
A fazer a noite após o dia
Amanhã, essa Lua
Que me viu cantar
Coisas de amor e saudade
Escutará outras canções
Talvez não minhas
Porque posso faltar
E ser também saudade
No seu caminho feito de poesia
Estrada de prata no firmamento
Aberta por poetas miseráveis.
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Ilustração: Paisagem com lua cheia - COELESTIN BRÜGNER

D'ocê

Saudade medonha d'ocê
No meio da tarde

Sem dúvidas
A chuva da manhã
A fez florescer, Saudade,
E ficar tão grande assim.

sábado, 17 de novembro de 2012

Relógio antigo

Esperei-te olhando para o Céu
Limpo, limpo em sua escuridão
E a Lua em quarto crescente
Contava comigo as horas
No relógio parado e fora de moda
Antigo como eu, sem forças, sem corda.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O que Páris ensina

Para Carla Meira Scheffer
Meus bons poetas e bons amigos
Encantaram-se com o fígado inchado
Levaram daqui o álcool
Combustível para divinos versos encantados
Cantados pelos querubins

Para eles, talvez
Morrer bêbado
Com os sentidos entorpecidos
Seria a única morte heróica
Embora suicídio

Mas, na minha lira tenho que dizer
Que há causa melhor pela qual vale morrer
Nesse mundo que é sofrer em desencanto
A cada minuto, a todo momento

Morrer de amor
Como nos ensinou Páris
Ao amar desesperadamente Helena
Ainda é a única morte
Que para o homem vale a pena.

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Ilustração: Enrique Simonet - El Juicio de Paris - 1904

Soneto para o amor que dorme

Esses mansos versos que nascem na meia-noite
Vão para ti como a mansa brisa vai para o mar
E alcançam teu colo, teu respirar cadenciado,
Tua brancura nua sobre o rosa da rede rendada

Ouve o riscar do lápis sobre o pardo papel
A cantar a louca e breve felicidade dessa hora
Que se faz canção risonha e que por fim chora
A proximidade das incertezas do alvorecer

Dorme porque a vida é desilusão e cansaço
Sonha alegre, poisque o sonho é vida verdadeira
Não acordes, a realidade é do sonho o pesadelo

Contenho o choro que me chega neste momento
Ele vem arrastado pelo tempo que a tudo devora
Até esta tua nudez que hei de guardar na memória. 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Soneto para quem luta

Trago um fuzil em que as balas são as palavras
E que, calada, a baioneta é feita de agudos versos
Tenho sempre na alça de mira os que exploram
Os homens que vivem do abuso sobre outros homens

Faço-me assim então guerreiro solitário
Franco-atirador a espera de vítimas
E são tantas as que cruzam meu caminho
Que temo um dia me faltar a munição

E em noite em que urra de fome o meu povo
Na solidão das ruas geladas e sem teto
Faço-me sentinela das suas poucas esperanças

E na manhã, antes do Sol no horizonte ereto
Levanto-me e vou à guerra para denunciar
Esse horror provocado por quem rouba e mente.




segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Luísa

Aos 14 anos, Luísa sumiu
Dizem que fugiu
Ainda com o uniforme do colégio
Pulara a janela
Outros dizem que foi roubada
Era adotada
Quem iria notar e sentir falta?
A mãe postiça
Ficou sentada na varanda
Na Vila Operária
Engordando e se alimentando do nada
E hoje, depois de mais 40 anos passados
Quando o Sol escurece
Na varanda da casa abandonada
Um vulto enorme de sofrimento e saudade
Pode ser visto esperando Luísa
A colegial de olhos azuis
Que nunca mais deu notícias.



sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Almas

As dores e as alegrias
Das almas que, a contragosto
Já abandonaram este mundo
Somam-se em nós

Somos seus olhos
Que um dia viram
Essa realidade duvidosa

Somos seus ódios
A ira por não se saberem de fato

Seus amores e desejos
E seus medos de viverem sós

Um dia seremos assim também
Somente almas
Que por esta Terra vagaram
Em dúvida e desespero.