terça-feira, 30 de outubro de 2012

Bordados

Há tempo que não te escrevo, Polaca
É que o nosso tempo se fazia distante
Nos meus dias, nas minhas obrigações
E hoje ele resolveu se fazer saudade
Tão viva e próxima que posso tocá-la

Lembrei-me de teus coloridos bordados
Com as cores que tiravas do dia entardecido
E no tecido aquelas luzes todas
Que sem saber coloriam minha vida

A saudade borda-me com cinzas linhas
Tristes, tristes, tristes num escurecer diário

É que aí aonde estás, há um grande bordado
Feito pelas agulhas das estrelas
Que do céu, em escura noite
Furam com antigos desejos meu coração.

domingo, 28 de outubro de 2012

Do que é feito o vento

Quando sopra o vento
E faz tremular as bandeiras
Tingidas do vermelho sangue
De todos os nossos companheiros
Que um dia tombaram na luta
Oiço antigos e silenciosos cantos
Que na voz do vento vão se juntando
A nos dizer ao pé do ouvido
Que o belo neste mundo
É lutar pelo que vale a pena
E que tudo neste mundo
Pode ser modificado pela forte ventania
Que é feita do sopro
Dos últimos suspiros
Daqueles que sofreram na tirana opressão
E num doído gesto de força e convicção
Tiraram do fundo do peito
O grito de liberdade
Porque para o vento não há prisão.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Espanto

A vida é espanto
Espanta-me a vida
Essa loucura que é um caminhar constante para a ausência

Espanta-me este doido riso nervoso dos que tentam se esquecer disso
Espantam-me o desespero dos atores deste triste espetáculo
Que ignoram que o autor dessa tragédia
Um dia vai lhes tirar a fala em pleno ato

Espanta-me teus olhos, Cariño
Porque eles são alegrias na eternidade
Deste minuto tão fugidio da felicidade
Que inevitavelmente antecipa o choro.



sábado, 20 de outubro de 2012

Café amargo

O florista corre com um ramalhete de rosas
Por certo encomenda urgente
D'algum coração urgentemente apaixonado

Na mesa ao lado
A moça tenta esconder as lágrimas
Enquanto as flores passam
Ela chora a perda do namorado

Ao largo, a puta velha se veste de rosa
E em frente à loja de brinquedos
Procura homem e se desespera
Ao pedir trocados para um prato de comida

E eu aqui mudo
Misturando ao meu café
Um pouco do amargo do mundo.

Amigos

Venho de terras distantes
E trago no peito
As imagens desse longo caminho
Feitas de paisagens não esquecidas
E muitas saudades

Meus pés ainda caminham mundo
Cansados que estão
Dizem-me ao coração
Que guarde de todo amigo a feição
Por que no peito
Amigos não pesam não. 

domingo, 14 de outubro de 2012

Onde encontrar poetas

Amigo meu, tu que agarras a feliz pena
Lembra, os poetas não se forjam
E jamais se criam no Country Club
Poetas nascem nas dores grudadas em si

Tu não irás encontrá-los cantando vaidades
Fazendo versos insossos de luxúria
Ou enganações da moda que voga

Os poetas de verdade não estão expostos
Porque os desencantos que cantam
Surgem do própria dor e da dor alheia

E para sentir a dor, mesmo que de outro ser
É preciso recolhimento, aproximações silenciosas
Aos corações que rotos, em pobreza, estão nas ruas
E não nas quadras de tênis vestidos de falso branco.

Não sei se te amei

Quem poderá dizer
Se um dia te amei de verdade?
A verdade exige tempo
Tempo que tu não me deste

Amei o que tu fazias
Como quem ama
Do escultor a obra

Amei o que tu eras
Como quem ama
A música que vem de longe

Quase amei teu coração
Que tu me escondeste
E ninguém ama
Aquilo que não sente e vê

Ao escondê-lo, tu querias
Em troca, para mostrá-lo
Em mim grandes modificações

Outro era no teu sonho
Um homem que finge
E fingimento é em mim
Moeda inexistente, que não tenho

Pois, sou apenas o que sou
Um poeta que ama
Somente a quem o amor deseja
Em intensidade e verdade.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sapato de andarilho

O sapato aperta
Os anos passam
A dor não acalma
Os olhos são fracos
A cachaça é cara
Acabou o cigarro
Fiz um poema
Pisei na lua
E o peito me dói
Nessa saudade
Do que fui
Sem desejar

As crianças crescem
Os livros envelhecem
A música se repete
Fiz um poema
Topei comigo
Sujeito que não conheço
Longe do sonhado
Caminho cansado
Rumo para o que resta
Sem entender a vida
Sem entender o rumo
Desta estrada finda.





quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Canção para Maria Tereza

Era Março
Tarde quente
No Colégio Santo Inácio
E no quadro
Desenhadas todas as letras
Do alfabeto
Com giz colorido
A colorir minha alma em festa
Será que a austera professora sabia
O bem que me fazia
Ao apresentar-me as letras
As chaves para ler a vida
E poder colocar no papel
O que sentia meu coração?
Sim, Maria Tereza sabia
E num riso raro
Fez-me abrir a cartilha
Como se abrisse o mundo.

A roseira velha

A roseira quando fica velha
Reserva para si um ano sem flores
E brota novamente, com novos galhos
Viçosos galhos, verdes e fortes
Prepara-se para o próximo ano
Em que será a bela da Primavera
Florida, florida
Sobre os antigos e secos espinhos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Vazios & Saudade

Há sabedoria nas estrelas
Nessas luzes que nos chegam
De outros séculos, doutros tempos
Sim, há muito ensinamento
Nos vazios que sustentam esses luzeiros
Até mesmo eles, os vazios,
Encontram em si utilidade
Os vazios sustentam mundos
E humildes, dentro de mim
São contentes ao serem tratados
E apenas chamados de saudade.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Agudos da manhã


Lá do morro, às cinco da manhã
Um tiro solitário
Acorda a sinfonia dos pássaros

Alguém matou, alguém morreu
Uma alma segue para o céu como passarinho

A manhã tem seus próprios sons
Um agudo surdo de morte
Agudos vivos da vida que segue.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Teu brilho fugaz

Brilha, brilha, brilha
Com toda a intensidade
A brevidade da vida é chama
Que pode escurecer

Deus deu às estrelas o brilho
Mas não deu a elas a eternidade
Por mais que se faça em luz
Toda estrela um dia morre.


Desencanto

O Sol encantado dos últimos dias
Hoje não apareceu, é Sol apenas
Um ponto minúsculo entre nuvens

E a vontade que em mim se refizera
E a fé para dinamitar montanhas
São fogueiras extintas por súbita chuva

Sou puro desencanto
Embora a quimera diga que não
A realidade nubla minhas horas
Enevoa-me os segundos em agonia

Há muitas verdade nisso
As sombras da noite
São as mesmas para o feliz sonho
E para o assombro dos pesadelos

O Sol que nasce todos os dias
Mesmo quando aqui se faz noite
Do Oriente ao Ocidente
Queima-se em rito de morte


E ilumina
O esperançado e o vencido
O que busca e o que espera
O conformado e o que almeja


E aquece
O miserável e o bem-aventurado
Aquele que infinitamente ama
E aquele que de si se esquece.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Desgosto com Cibalena

E foi assim
Num dia comum
De claridade morna
Esquecido pelos calendários

Louca, louca, louca
A dizer desconexidades
A fazer barbaridades
Ameaças e faca nos pulsos

Estava indisposta com a vida
Estava irremediavelmente louca
Amara, e por ter amado tanto assim
Perdera o juízo, o amor por si

Dizem que fugiu do manicômio
E morreu em casa ao tentar aborto
Com agulha de tricô e forte veneno
Álcool, soda, desgosto e Cibalena.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O doce do meu amor

Hoje tenho fome

E vou fazer uma sopa de versos
E sorvê-la, quente, pelando
Como um frade
Depois do jejum da quaresma

Meu coração padece vazio
E pede versos em nova dieta
Temperados com Camões
João Cabral, Drummond e Baudelaire

Depois do bicho cheio e satisfeito
Vou inventar receita diversa
Vou cantar o voo do vaga-lume
Seu pisca-pisca na bunda
A saliva da mulher amada
Que na minha língua abunda

Vou misturar a tudo isso
Um pouco mais de safadeza
E tirar do que está escondido
Entre as pernas de quem amo
O doce da sobremesa.

Imensidões

Preciso sentir o mar, Cariño
Preso no continente
Há uma parede de serras
Que me priva de sua brisa

Careço, Cariño
De imensidões
Desse oceano sem medida
E que vai dar no Tejo

Faz-me falta teu amor, Cariño
Imenso, imenso, como o Mar Português
Que é a soma de todos mares do mundo

Preciso dessas infinitudes
Porque sinto minh'alma amiudada
Preciso de mar e de teu amor
Porque sem eles, miúdo sou.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Espetáculo dos estúpidos

Vida doida
Desumanizada
Um atropelamento
Ambulância no engarrafamento
O sangue que corre no asfalto
A massa encefálica exposta
E uma multidão que parou ali
Só para uma espiadinha
 No corpo que expirava

A morte é coisa curiosa

Logo, todos vão embora
A estupidez já deu seu espetáculo
O cadáver já esfriou
Rotina
Todos pesando em suas rotinas
Que se reproduzirá amanhã
Igualzinha, em desumanidade
Porém civilizadamente
Sem tumultos
Sem revoltas
Sem pagar entrada
Pois, para tal circo de horror
Não se cobra ingresso.