Capítulos primeiro e terceiro do livro "Meninos da granja", escrito no início dos anos 2000 e ainda inédito. O livro conta a história do orfanato de Campo Comprido na década de 70, em Curitiba, onde hoje funciona a Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS). Os internos eram distribuídos no prédio do orfanato em quatro companhias como no quartel, conforme a idade.
Estrada velha de Campo Comprido, 2005. Hoje tirei o dia para um passeio com meus filhos pelo mesmo caminho. Ainda bucólica, a estrada está lá, asfaltada, agora serpenteando mansões, vigiando destinos menos miseráveis.
Naquele final de tarde, a luz dentro da jaula se escasseava. Ao longe, por onde conseguia ver, uma nuvem de poeira marcava a trajetória das minhas dúvidas e apreensões. Estava deitado, tentei levantar algumas vezes, mas os braços algemados por trás das costas doíam e tornavam meus esforços inúteis. Um homem que tem seus braços imobilizados, deitado se sente como uma barata tombada de costas, totalmente inútil.
Recentemente tive um acesso de riso incontrolável numa loja muito fina e famosa. Na vitrine vi uma camisa exposta, exatamente igual a dos nossos antigos uniformes, o mesmo tecido cinza anunciando desconforto, o mesmo corte sem imaginação. Depois de 30 anos e de ter vestido os filhos da miséria, acreditem, a maldita havia virado moda! A balconista sem saber a razão do riso até riu comigo. Depois, como eu não conseguia controlar-me, ela ficou me olhando com ar de desconfiança, por certo me julgava louco — Sim, bela e gentil senhorita, bem guardadas no fundo do peito estão todas as razões do mundo para requerer vaga de Napoleão em qualquer hospício!
Dos trajes antigos só fiquei com as meias e os sapatos herdados de um morto que nem conheci. Até mesmo a muda de roupa limpa, que estava no embrulho, herança de outro defunto, foi “confiscada” pelo gordo — talvez pensando encontrar ali mais moedas.
Capítulo III
Os louquinhos
Capítulo I
Um dia de
pancadas e pavor
Já o verme – este operário
das ruínas –
Que o sangue podre das
carnificinas,
Come, e à vida em geral
declara guerra,
Anda a espreitar meus
olhos para roê-los (...).
Augusto dos Anjos
Desconfie do homem que diz controlar o destino, o próprio
e pior, o dos outros. Das duas, uma: ou ele é um idiota, ou é um deus. Nesta
vida, pensei ter topado com alguns desses santos homens, porém posso garantir
que eles jamais habitaram o Olimpo, ou andam por aí guarnecido por anjos barrocos
e rechonchudos. O destino não tem donos. Existe apenas e artífices lhe servem,
sendo por ele moldados, usados, gastos e esquecidos na noite do tempo, tão
incompreensível quanto ele mesmo.
Estrada velha que liga Curitiba ao Norte do Paraná, 1975. Quando contava com não mais do que uma dúzia de anos,
tive esta empírica certeza de que nossos caminhos são preparados por estranhos
operários, quase sempre desconhecidos, pagos por patrões mais desconhecidos
ainda. Isso se deu quando eu estava algemado e sacudia numa jaula adaptada a um
carro de polícia. Sentia meu corpo, contra minha vontade, lançado de lado a
lado, a bater na lata do velho automóvel, que percorria um caminho cheio de
pedregulhos, buracos e curvas intermináveis.
Estrada velha de Campo Comprido, 2005. Hoje tirei o dia para um passeio com meus filhos pelo mesmo caminho. Ainda bucólica, a estrada está lá, asfaltada, agora serpenteando mansões, vigiando destinos menos miseráveis.
Naquele final de tarde, a luz dentro da jaula se escasseava. Ao longe, por onde conseguia ver, uma nuvem de poeira marcava a trajetória das minhas dúvidas e apreensões. Estava deitado, tentei levantar algumas vezes, mas os braços algemados por trás das costas doíam e tornavam meus esforços inúteis. Um homem que tem seus braços imobilizados, deitado se sente como uma barata tombada de costas, totalmente inútil.
Finalmente o carro parou. Os policiais — esses
estranhos operários da lei, quase sempre à margem dela — desceram com uns
papéis e entregaram para não sei quem. Não lembro seus rostos, roupas que
vestiam, nada. Estava aliviado e isto era o bastante para aquele momento. Logo
que senti minhas mãos livres, cocei com enorme prazer a cabeça. Meus cabelos
estavam repletos de piolhos e filhotes de outros insetos menos nobres,
lembranças vivas e vorazes do cárcere recente.
Um dos policiais entregou-me a outra muda de roupa num
pacote envolto por jornal e barbante. Somada aos meus trajes, o resultado dava a
dimensão de tudo que eu pudera juntar em minha curta jornada.
Logo, a viatura voltou pelo mesmo caminho tortuoso que
a trouxera ali.
Ainda a me coçar, verifiquei que estava no meio de um
grande pátio. Em minha direção caminhavam um branco gorducho e um negro muito
alto. O gordo segurou no meu braço e me conduziu para uma casa onde se lia
sobre a porta “Diretoria”. Lá, uma senhora, de uns cinqüenta anos, polaca das
bochechas rosadas — dessas que serviriam de personagem para fazer propaganda de
geléia na TV — recebeu meus papéis. Sem olhar para mim, perguntou:
“Sem família?”.
Fiquei calado.
“Pode levar”, disse a senhora, que depois descobri ser
uma estranha operária da assistência social dedicada aos órfãos e aos que
aparecem na retórica dos políticos como sendo os menos favorecidos pela sorte —
ou seja, aos fodidos da vida.
O gordo pegou novamente meu braço e me arrastou até o pavilhão
central que, pelas grades no portão de entrada, senti que seria meu novo lar.
Antes, ao atravessarmos o pátio, pude ver outros meninos que brincavam de bola
em torno de um grande pinheiro enfeitado com luzes natalinas.
Chegamos ao banheiro. O gordo me mandou tirar a roupa,
enquanto o negro trancava a porta. Aquela sala de banho recebia uma fina coluna
de luz vinda da janela, toda molhada, exalava uma fedentina indescritível. Do
lado dos chuveiros, alinhadas e com suas portinhas amarelas, as latrinas
estavam atulhadas de merda. No começo, tentei segurar a respiração, aquele ar podre
ardia nos meus pulmões. Tive que respirar — eis a maior danação humana:
respirar. Comecei a tirar a camisa e levei de pronto um safanão do gordo que
pedia pressa. Sem opção, coloquei meu pacote no chão e fui me desfazendo das
roupas imundas e não menos fedidas do que as latrinas. Ao descalçar os sapatos
cometi um grave erro. Deixei cair algumas moedas no chão. Rápido, tentei
escondê-las. Mas o negro as viu. Eram trocados que mal dariam para comprar meia-dúzia
de cigarros baratos. Enquanto o negro apanhava o dinheiro, o gordo tirou o
cinto e misturou ao meu couro e sangue todos os seus recalques. E como ele era
recalcado, meu Deus!
Apanhei muito. O cinto era de lona, na época usado por
soldados do Exército, e tinha a ponta guarnecida por metais. Escorreguei e
rolei naquele chão nojento, coberto por gosmas, úmido, ouvindo os palavrões do
gorducho. As pancadas eram distribuídas “cientificamente” pelo meu corpo.
Pegavam firme, soltando a carne dos ossos, em vergões desenhados pelo acaso em
estranhas pinceladas abstratas. As piores eram as que atingiam a cabeça e a
virilha. O bater é uma das mais antigas artes, sempre renovado em novas
metodologias, sendo assim, consome energia criadora até mesmo das bestas. Ofegante,
o gordo se cansou. O negro se aproximou e pisou no meu pescoço. O cara não
tinha um pé e sim uma prancha dentro daquele sapato com sola de pneu. O que
seria dessa arte do terror sem que seus estudiosos não se alternassem na administração
de doses homeopáticas de maldades?
“Aqui, os internos não podem ter dinheiro. Não podem
ter nada!”, gritava o negro, a guardar as míseras moedas no bolso da calça.
Não sei como, mas no momento seguinte o cara já me
segurava pelo pescoço.
“Entendeu?”, vociferou o negro banguela.
De imediato, acertou-me um soco no estômago e me
empurrou para baixo da fria água do chuveiro. Não me lembro se chorava, talvez
gritasse, sem entender a gratuidade das atitudes daqueles operários da
violência. Soluçava. Pânico... Era isso, eu era puro pânico.
Após a surra e o banho, não me enxuguei. Com cheiro de
cachorro molhado, fiquei por algum tempo parado, encolhido e tremendo. O gordo supunha
que eu o estava encarando. De fato, estava. Creio que nem mesmo quando minha cansada
alma for amparada por Caronte, após termos remado no último dos rios, hei de
esquecer a cara daqueles dois filhos da puta.(6)
Com um soco na cabeça, o gorducho me fez olhar para o
chão.
“É assim que os internos andam aqui dentro, olhando
para o chão e com os braços para trás”, ensinou.
Diante de convincente didática, o melhor foi obedecer.
Outra virtude da miséria é nos tirar o orgulho sem nos deixar quaisquer
resquícios de dignidade.
Segurando o pacote e minhas roupas contra o peito,
olhando fixo para o chão, fui conduzido nu pelo pátio a outro pavilhão que
servia de lavanderia. Estava frio. Os outros meninos pelos quais cruzava
mantinham-se indiferentes. Mais um apenas.
Recebi um calção azul que me serviria de cueca, um
macacão marrom de brim forrado de remendos e uma camisa cinza de algodão
grosseiro.
Recentemente tive um acesso de riso incontrolável numa loja muito fina e famosa. Na vitrine vi uma camisa exposta, exatamente igual a dos nossos antigos uniformes, o mesmo tecido cinza anunciando desconforto, o mesmo corte sem imaginação. Depois de 30 anos e de ter vestido os filhos da miséria, acreditem, a maldita havia virado moda! A balconista sem saber a razão do riso até riu comigo. Depois, como eu não conseguia controlar-me, ela ficou me olhando com ar de desconfiança, por certo me julgava louco — Sim, bela e gentil senhorita, bem guardadas no fundo do peito estão todas as razões do mundo para requerer vaga de Napoleão em qualquer hospício!
Dos trajes antigos só fiquei com as meias e os sapatos herdados de um morto que nem conheci. Até mesmo a muda de roupa limpa, que estava no embrulho, herança de outro defunto, foi “confiscada” pelo gordo — talvez pensando encontrar ali mais moedas.
Passei depois pelo almoxarifado. Recebi de um homem
manco, com a boca meio torta e de olhar triste, um pedaço de sabão, escova de
dente, tubo de creme dental e uma toalha com a textura de lixa. Objetos de
valia, mas que se tornaram um grande problema. Como portá-los, se no uniforme
não havia bolsos? Mantive-os na mão.
Na seqüência, perdi todo meu cabelo na barbearia. O
barbeiro de sotaque carregado, provavelmente cearense, vermelho, tinha um
medonho bafo de cachaça. O corte não demorou mais do que alguns minutos. Veja
que sorte: dei graças ao ter ficado com minhas orelhas. Muito bem, com os
cabelos também dei adeus aos piolhos.
Normalmente, após cortarem o cabelo, os barbeiros
costumam salpicar talco na cabeça de seus fregueses. Recebi minha dose de
talco, um veneno para insetos nauseante e que ardia em contato com as feridas
da minha novíssima careca e irritava-me os olhos. Tornei ao pavilhão. No
segundo andar, fui guiado para um grande quarto que tinha por sobre a porta a
inscrição “4ª Cia”. Num canto, outros meninos, já rapazes na sua maioria, se
apertavam em frente à TV. Ao fundo, seis longas fileiras de camas. Mais ao
fundo ainda, uma fila de armários. Atrás deles, uns vinte beliches.
“Você dorme ali”, disse-me o gordo, apontando a parte
de cima do último beliche e dando meia-volta.
Subi no beliche e escondi sob o travesseiro encardido,
desenhado com marcas de baba e sangue, a escova, creme dental, toalha e o sabão.
O cheiro da cama se fazia insuportável. Provavelmente, ela havia recebido o
mesmo talco do barbeiro. Ao pé havia um cobertor marrom e furado, apelidado de
corta-febre, um verdadeiro trapo, que me acompanharia por longos invernos.
Fiquei ali por algum tempo. Deitado, tentava organizar
as idéias. Não sentia fome, apenas um grande vazio no estômago; havia mais de
quatro dias que não comia nada. Um ovo cozido fora minha última refeição.
Incrível como nos acostumamos com a fome. A miséria tem a virtude de nos libertar
dos apegos materiais, de nossos pequenos vícios, inclusive o de comer.
Impossível dormir. Meu corpo estava todo doído, a boca
seca. Aproveitei a luz acesa para um pequeno balanço de minha situação física.
O ombro e o joelho estavam inchados e meus punhos roxos e cortados. Levantei e
fui ao banheiro. Urinei. Ardia e a urina saiu misturada a sangue. Tinha sede. Abri
a torneira, lavei o rosto, a careca e bebi uma grande quantidade de água. O
cheiro de merda continuava insuportável e vomitei de imediato tudo que havia
bebido. Como a sede ficara maior, tornei a tomar água e desta vez não a vomitei.
A miséria, em seu último estágio, faz-se acompanhar de supremas virtudes, como
a de nos misturar com a imundice e fazer-nos indiferentes ao lixo e
excrementos.
Tornei ao dormitório e resolvi me juntar aos outros
meninos. Eles continuavam reunidos em torno do aparelho de televisão e nem
deram bola para a minha chegada. Com o estômago roncando, procurei não falar. Havia
aprendido que em ambientes desconhecidos é mister ver, ouvir, ficar calado. Observei
que os piás mais próximos da TV, sentados em bancos de madeira, trajavam
uniformes diferentes. Camisas de algodão xadrez e calças de brim. Mais
afastado, esparramado no chão, estava um pequeno grupo com uniforme igual ao
meu, os “fujões”, como fiquei sabendo mais tarde. Juntei-me a ele.
O fedor de chulé cozinhava minhas narinas. Na tela, em
preto e branco, o Papa Paulo VI proferia um sermão. (7) Não dava para ouvir
nada do que o Papa estava dizendo, todos conversavam. Naquele lugar, o Papa
falando ou uma vaca cagando daria no mesmo. O silêncio só se fez quando começou
o filme estrelado por Audie Murphy. (8) Uma fita de guerra, dessas em que as
balas do fuzil do mocinho jamais acabam.
Estava me distraindo. Às 10 horas, as luzes se
apagaram e a TV foi desligada. Na porta, o gordo nos mandava dormir. — Bosta, o
mocinho sobreviveria ao duro combate?
Sem reclamarem, os piás com uniformes diferentes foram
para suas camas individuais. Enquanto os fujões caminhavam para trás dos armários.
Escalei com dificuldades o meu beliche. Ajeitei-me o melhor possível para não atiçar
as dores que aumentavam conforme eu sentia as ripas de madeira do estrado
perpendiculares às costelas.
Na parte inferior do beliche deitou-se um menininho,
com cara de índio. Ele não deveria ter mais de dez anos de idade. Daquela hora em
diante conversa nenhuma se ouvia. Somente ao longe, dava para escutar o
foguetório comemorando o Natal que se anunciava.
Fiquei muito tempo passeando da vigília para o sono.
Não sentia fome. Não sentia cheiros. No meio da noite, entre um pesadelo e
outro, entre um susto e outro, pensei vislumbrar vultos com cobertores
escondendo suas cabeças e se aproximando da cama logo abaixo da minha. Ouvi
pedidos velados de silêncio, ameaças de porrada, breves gemidos e voltei a
dormir.
Capítulo III
Os louquinhos
Sentei-me
num claro de tempo.
Era um remanso
de silêncio,
de um branco silêncio,
anel formidável
onde os luzeiros
se chocavam com os doze flutuantes números negros.
F. G. Lorca
Formamos pela manhã. Eu continuava mal. Tivera
hemorragia, perdera muito sangue. Felizmente, numa rara demonstração de
sensibilidade, Fausto, talvez por ter sofrido tanto pelo mesmo motivo, já que
era desdentado, retomou sua alma ao diabo e tirou-me da fila do trabalho. Esse
ato de misericórdia, quase fez com que eu esquecesse da surra covarde do
primeiro dia e o roubo de minhas moedas. Eis o encanto de satã ao conquistar o
ignorante: guardá-lo no vazio do não se saber. E quem não sabe de si, não sabe
do mundo, nada pensa; sem ser demente, faz as coisas e não se dá conta do bem
ou mal que está realizando.
Enquanto o restante dos internos trabalhava, os
louquinhos e os inválidos ficavam soltos no pátio, a perambular de um lado para
o outro, ou sentados, às vezes mudos, às vezes falando barbaridades desconexas.
Sentei-me à sombra de um jasmineiro. De lá foi possível observar um por um dos penados
esquecidos por Deus e seus prestimosos auxiliares.
Zé Coqueiro, um autista, corpo de faquir indiano, de
cócoras justificava o seu apelido. Sorrindo o doce sorriso dos alienados, o Zé
desenhava numa rapidez incrível coqueiros com as pontas dos dedos na terra
fofa. Terminado o coqueiro, ele o apagava imediatamente e num ato contínuo, outro
coqueiro desenhava; milhares de vezes, infinitas vezes.
O autista abandonado pela família deveria ter uns 15
anos e nunca recebera uma visita. Zé, porque não possuía registro civil.
Coqueiro, sua assinatura para o mundo. Nem mesmo a assistente social
desconfiava qual seria o seu nome verdadeiro. Um dia ele deve ter aparecido
ali, transportado igual a um porco num carro de polícia ou ambulância, sem defesas e comunicação, como quase todos os
louquinhos que estavam “estocados” naquele armazém de alienados.
Albino e com feridas na pele, chegou-se para perto de
minha árvore o Treme-treme, menino da cabeça quadrada e olhos miúdos. Frank,
como também era chamado, sofria de algo que eu nunca tinha visto. Involuntariamente,
os seus músculos descontrolados o faziam tremer todo.
“A...me...a...meu...”,
balbuciava o infeliz e não passava disso, porque os músculos de sua face
repuxavam e seu corpo tremia. Depois sorria e voltava a tremer, molhando-se com
a própria urina e lambuzando-se com a merda que escorriam pelas pernas.
Novo na escola, Pingüim era entrevado. Com os pés
virados para dentro, ele andava passinho por passinho. Não falava, apenas ria
(o riso é a única propriedade dos loucos), exibindo restos de comida nos seus
dentes acavalados.
“Punheteiro”, gritava um interno que passava.
“Filho da puta”, respondia aos berros o Sorvete, demente
solitário que se escondia por detrás das árvores. Ali estava a única expressão
possível de se ouvir da boca do pobre diabo. De resto, creio que Sorvete não
sabia falar mais nada.
Com a cara cheia de espinhas e uma touca encardida
listrada de verde e branco enfiada na cabeça, Sorvete colecionava figuras de
mulher, dessas de revista, e se masturbava o dia inteiro; não incomodava
ninguém, posto que não era tarado nem pederasta. O seu barato, punheta, nada
mais.
Badu, um negrão retardado muito alto e forte, posava de
defensor do Sorvete, assim como de todos os louquinhos. Bastava mexer com um
deles e a resposta vinha na hora: um tijolo ou pedra sibilava por nossas
orelhas, sem direção, pegasse em quem pegasse e a vingança estava feita. Por
sorte, naquele dia, o tijolo não atingiu ninguém.
Mesmo entre os
louquinhos tínhamos líderes. Os goiabas mais antigos e com, digamos, alguma “inteligência”
mandavam nos mais novos. Badu e Joaquim Maia estavam nessa condição e recebiam
tratamento diferenciado dos outros louquinhos e até mesmo dos funcionários. Para
se ter uma idéia do nível mental dos dois, basta saber que eles ficavam muito
tempo no portão da escola num jogo absurdo. Joaquim Maia, de costas para a rua
e para os carros que passavam, gritava o nome de uma cor:
“Verde!”.
“Vermelho!”, adivinhava o velho Badu.
O carro que passara não era verde nem vermelho, tinha
outra cor qualquer! O interessante ainda é que este jogo de malucos não havia
pontuação nem ganhadores. Depois de horas jogando, os dois simplesmente iam
embora. Não sabiam contar.
Joaquim Maia tinha uns 30 anos, barrigudo e quase anão,
sofria de epilepsia, com cardápio variado de ataques, que ia desde o
convencional até uma grande corrida que terminava no alto de alguma árvore.
Pensei que o louco exagerava e fingia, mas um dia ele teve dois ataques
seguidos. Correu, trepou num pinheiro alto e lá em cima começou a se
estrebuchar. Caiu, sangue para todo lado e fraturas expostas.
Esses eram os loucos permanentes, os da casa. Às vezes
apareciam novos, surgidos sabe deus donde. Os marmanjos urinavam e cagavam na
cama. Fediam por falta de banho.
Os aleijados, vítimas da paralisia infantil, viviam
com os loucos. Os “motoqueiros”, assim chamados pelo uso das muletas, revelavam
quase sempre a mesma história. No princípio, tratados pela família e parentes.
Depois internados em hospitais e mais tarde abandonados no orfanato.
Não obstante suas deficiências, os motoqueiros
demonstravam-se muito unidos e procuravam desenvolver atividades e propunham a
si mesmos desafios. Assim, muito antes do Poder Público esboçar qualquer
projeto de esportes para deficientes, eles se reuniam e disputavam jogos de
futebol. As muletas de madeira se chocavam com violência e os que tinham apenas
uma perna, envolta pelo metal dos aparelhos, arriscavam chutes na bola de meia
ou borracha. Jogávamos com eles e os tratávamos como iguais, inclusive no
trabalho e até mesmo quando o assunto era porrada. Eles brigavam entre si e com
os outros internos. Desse costume, só posso dizer que uma muletada no pé do
ouvido dói bastante.
Em número reduzido, existiam também os totalmente inválidos,
praticamente paraplégicos. Braulino, um deles, mais velho do que os outros, usava
óculos modelo fundo de garrafa. Como só tinha movimento nos braços, uma armação
de ferro sustentava-o. Duro, andava de muletas e demorava horas para vencer
alguns metros. Não tomava banho e cheirava mal. Também, como se livrar daquele
esqueleto esquisito? Sem o que fazer, ele vivia sentado no jardim, e com o
nariz encostado na Bíblia pregava absurdos apocalípticos, misturando apóstolos
aos profetas e emendando textos para dar maior drama ao que falava.
Não faz muito
tempo vi o Braulino, cabelos brancos, esmolando nas ruas de Curitiba. Vivia por
certo seu próprio apocalipse e de mãos estendidas esperava o final do mundo
que, segundo ele, terminaria numa infernal fogueira.
Tentei várias
vezes fazer uma escala de intensidades para o abandono. Tenho muita prática
nisso, passei pelos dois lados desta praga que nos sufoca o espírito. Qual
deles seria o pior e qual deles seria o menos grave? Inútil qualquer resposta.
O abandono é isso: abandono. E a escala se faz no coração do abandonado e na
consciência atormentada de quem abandona. Ao analisar minha história e de centenas
de meninos que viriam a conviver comigo, conclui que as famílias, os pais ou
responsáveis legais, ao abandonarem seus filhos podem ser guiados a mais das
vezes por três motivos básicos: o econômico, desajustes familiares e
preconceitos sociais. Esses motivos não raro aparecem juntos. Veja bem, eu
parto de observações puramente empíricas que me chegaram aos sentidos, sem a ciência
dos números e estatística, desprezando as variáveis psicológicas, que por elas
mesmas dariam um grande tratado para um pesquisador que esteja disposto a
executá-lo. Eis aí uma sugestão de nome para a dissertação: “Tratado do abandono,
perfil sócio-psicológico das crianças abandonadas e seus progenitores”. Legal,
né?!
Os mais comuns
de serem encontrados num orfanato são os abandonados por motivo econômico
combinado com o desajuste familiar. É o pai e a mãe que não têm como sustentar os
seus, por falta de trabalho ou renda, além de uma grande dose de ignorância
provocada pela baixa escolaridade. Na falta de recursos econômicos, os laços
que unem o frágil núcleo familiar simplesmente são rompidos, seja pela fome,
seja pela miséria, depressão ou loucura decorrentes. Imediatamente, os membros
dessa família são empurrados para a marginalidade, delinqüência, alcoolismo,
drogas e agressões mútuas. O próximo passo é a desagregação familiar. Os
adultos, quando não presos ou mortos, somem pelo mundo, deixando sua prole ao
deus dará. Veja, caro leitor, que aqui falo da família comum, com papéis bem
definidos de pai e mãe. Mas o mesmo se
repete, e de forma mais dramática, em proles sustentadas apenas por um desses
atores.
Nos
desajustes familiares também incluo as causas naturais como a morte ou doença
dos provedores e ausência de parentes e amigos da família para a adoção. Mas
esses são casos raros nos orfanatos, se comparados aos anteriores. Dos internos
que conheci, poucos se diziam realmente órfãos.
Por último,
temos o preconceito social. É a mãe solteira que por motivos “morais”,
religiosos, ignorância — a própria, dos seus pais ou companheiro — insiste na
gravidez e é obrigada a abandonar a coisa que se fez em seu útero. É a gravidez
indesejada de mulheres adolescentes ou das que caíram na vida. É o patrão que
dormiu com a funcionária, amante ou empregada e para amenizar o escândalo força
a mãe a entregar seu bebê para instituições de caridade.
Assim, creio,
que é muito difícil de se saber qual dos abandonos é o menos cruel. Todos têm
um grande grau de crueldade que culmina numa culpa tremenda naquele que
abandona e um enorme complexo de rejeição no abandonado.
Felizes eram
aqueles alienados que não tinham consciência de suas condições. Pobres
aleijados que se sabiam punidos duas vezes pelo terrível crime de terem
nascido.
Naquele tempo brutal, sempre ao final do dia, como já
era costume, ônibus despejavam levas de meninos na escola. Não eram fujões e
sim órfãos vindos de outras instituições, geralmente religiosas, que haviam
completado a idade de 10 ou 12 anos. Prudentes e pudicas, as freiras só
cuidavam de seus órfãos masculinos até o início da adolescência. Por certo,
evitavam assim o apego demasiado e outros pecados menores.
No internato,
esses meninos tinham singular comportamento. Dóceis, raramente desobedeciam,
acostumados que estavam com a orfandade. Eles se tratavam como irmãos, posto
que se conheciam desde o berço. Dispensados do rito de iniciação, logo esses guris
estavam o uniforme da 1ª Cia e brincavam descontraídos misturados aos outros no
pátio.
Mais tarde fiz amizade com alguns deles que atendiam
por apelidos numerais. Assim tínhamos o “Trinta” e o “Vinte Oito”, números
pelos quais foram identificados nos antigos orfanatos. Os dois, um Manoel e o
outro Manuel, sentaram praça na Marinha de Guerra ao deixarem Campo Comprido,
isso muitos anos depois.
O Trinta contava que não conhecera a família. Desde
nenê no orfanato das freiras, entrava seguidamente na fila de adoção. Negro,
sempre preterido. Os casais que por lá costumavam procurar “filhos” davam
preferência aos brancos e loirinhos. Dizem que o marinheiro morreu em serviço ao
tentar salvar pessoas que se afogavam no rio Paraná. Não duvido, ingênuo, perverso
às vezes, possuía grande alma.
Antes do jantar, os funcionários fizeram os arranjos
para dar equilíbrio às companhias. A terceira e quarta contavam um número
reduzido de alunos, com muitas camas vazias, ao passo que as outras duas
companhias estavam lotadas com os novos que não paravam de chegar. Muitos foram
promovidos.
As vagas na terceira e quarta companhias apareciam
porque os que completavam 18 anos deixavam a escola. Esse processo
demonstrava-se tão doloroso e incerto quanto o de entrada no orfanato. Todos os
anos formavam-se dezenas de sapateiros, alfaiates, gráficos e padeiros, com um
nível de escolaridade muito baixo. As assistentes sociais arrumavam-lhes
emprego. Ainda na condição de internos, esses rapazes ficavam por ali por mais
três meses até juntarem algum dinheiro. Depois eram encaminhados para uma modesta
pensão particular, com direito a simplório enxoval: lençóis, fronha, duas
camisas e uma calça.
Desamparados, recebendo salários miseráveis, solitários,
desajustados e extasiados com a repentina liberdade, os egressos do orfanato praticavam
besteiras. Perdiam o emprego, roubavam e acabavam presos em menos de um ano.
Poucos eram os que realmente encontravam um novo caminho na vida.
Acompanhávamos as notícias que vinham lá de fora e ficávamos inseguros quanto
ao nosso futuro, se é que assim poderia ser chamada aquela desgraça anunciada.
Não é à toa que alguns internos tentavam não deixar o
internato, mentindo a idade e fingindo insanidade mental, caso do João Louco,
que todo mundo desconfiava que não era louco porra nenhuma, mas vivia entre
eles. Tínhamos vários alunos em condições semelhantes. Velhos, alguns com mais
de 30 anos, que procuravam em si alguma utilidade para o sistema montado na
escola. Os “peixes” da direção realmente eram úteis. Funcionavam como amortecedores
entre o peso da ira dos funcionários e a nossa fragilidade, assumindo funções
de monitores ou até mesmo de servidores contratados. Três deles eram muito
antigos na escola, com direito a salários e moradias especiais.
Valtinho morava próximo à horta com a família, mulher
e dois filhos. Magro e pequenino, contava uns 55 anos de idade e ainda jogava
muito bem futebol, um craque. Ele dedicava-se aos serviços gerais,
encanamentos, reformas, etc. Nas horas vagas, cuidava de pequena horta e de seu
galo de briga, que um dia roubamos e cozinhamos com abóbora (ficou um horror, a
carne dura dispersa numa gosma aguada doce e amarela; fome ignora os olhos, e
comemos tudo). Ele nunca descobriu quem foi, mas garanto que caso isso
ocorresse sua vingança seria medonha, dado o apego de Valtinho ao bicho.
Zelas, o zelador, contemporâneo de Valtinho quando esteve
internado, sofria de epilepsia. Morava num cubículo imundo do lado da 4ª Cia. O
material de limpeza que estava sob sua guarda se misturava a roupas e pertences
embolados por sobre a cama repleta de manchinhas de sangue das pulgas esmagadas.
Contrariando o nome e a função, Zelas não zelava por nada, já que os imundos
banheiros teoricamente estavam por sua conta e pelo estoque de desinfetantes,
pastas vassouras e sabões em seu quarto, via-se que o problema de higiene na
escola não era a falta de produtos de limpeza, era preguiça mesmo. Vivia
batendo papo, defendendo posições absurdas em discussões vazias com alunos e
outros funcionários. Contava-se que fora noivo e que abandonou a idéia de
casamento depois que descobriu que a noiva era fã do Tarcísio Meira. Numa noite
ao visitar sua futura senhora, ele foi solenemente ignorado até o término do
capítulo da novela. Nunca mais voltou. Sorte da moça.
Venâncio, o homem manco, com a boca meio torta, exercia
a função de almoxarife. Quieto, realmente triste, morava num quartinho isolado.
Escravo de doenças, logo após minha chegada morreu. Acompanhamos o enterro.
Naquele dia de chuva, o caixão simples desceu à cova sem choros e lamentações. Parente
algum deixou na tumba suas lágrimas. Viveu órfão, morreu órfão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário