MENINOS DA GRANJA

Capítulos primeiro e terceiro do livro "Meninos da granja", escrito no início dos anos 2000 e ainda inédito. O livro conta a história do orfanato de Campo Comprido na década de 70, em Curitiba, onde hoje funciona a Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS). Os internos eram distribuídos no prédio do orfanato em quatro companhias como no quartel, conforme a idade.


Capítulo I
Um dia de pancadas e pavor

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas,
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los (...).
Augusto dos Anjos


Desconfie do homem que diz controlar o destino, o próprio e pior, o dos outros. Das duas, uma: ou ele é um idiota, ou é um deus. Nesta vida, pensei ter topado com alguns desses santos homens, porém posso garantir que eles jamais habitaram o Olimpo, ou andam por aí guarnecido por anjos barrocos e rechonchudos. O destino não tem donos. Existe apenas e artífices lhe servem, sendo por ele moldados, usados, gastos e esquecidos na noite do tempo, tão incompreensível quanto ele mesmo.
Estrada velha que liga Curitiba ao Norte do Paraná, 1975. Quando contava com não mais do que uma dúzia de anos, tive esta empírica certeza de que nossos caminhos são preparados por estranhos operários, quase sempre desconhecidos, pagos por patrões mais desconhecidos ainda. Isso se deu quando eu estava algemado e sacudia numa jaula adaptada a um carro de polícia. Sentia meu corpo, contra minha vontade, lançado de lado a lado, a bater na lata do velho automóvel, que percorria um caminho cheio de pedregulhos, buracos e curvas intermináveis.


              Estrada velha de Campo Comprido, 2005. Hoje tirei o dia para um passeio com meus filhos pelo mesmo caminho. Ainda bucólica, a estrada está lá, asfaltada, agora serpenteando mansões, vigiando destinos menos miseráveis.

                  Naquele final de tarde, a luz dentro da jaula se escasseava. Ao longe, por onde conseguia ver, uma nuvem de poeira marcava a trajetória das minhas dúvidas e apreensões. Estava deitado, tentei levantar algumas vezes, mas os braços algemados por trás das costas doíam e tornavam meus esforços inúteis. Um homem que tem seus braços imobilizados, deitado se sente como uma barata tombada de costas, totalmente inútil.
Finalmente o carro parou. Os policiais — esses estranhos operários da lei, quase sempre à margem dela — desceram com uns papéis e entregaram para não sei quem. Não lembro seus rostos, roupas que vestiam, nada. Estava aliviado e isto era o bastante para aquele momento. Logo que senti minhas mãos livres, cocei com enorme prazer a cabeça. Meus cabelos estavam repletos de piolhos e filhotes de outros insetos menos nobres, lembranças vivas e vorazes do cárcere recente.
Um dos policiais entregou-me a outra muda de roupa num pacote envolto por jornal e barbante. Somada aos meus trajes, o resultado dava a dimensão de tudo que eu pudera juntar em minha curta jornada.
Logo, a viatura voltou pelo mesmo caminho tortuoso que a trouxera ali. 
Ainda a me coçar, verifiquei que estava no meio de um grande pátio. Em minha direção caminhavam um branco gorducho e um negro muito alto. O gordo segurou no meu braço e me conduziu para uma casa onde se lia sobre a porta “Diretoria”. Lá, uma senhora, de uns cinqüenta anos, polaca das bochechas rosadas — dessas que serviriam de personagem para fazer propaganda de geléia na TV — recebeu meus papéis. Sem olhar para mim, perguntou:
“Sem família?”.
Fiquei calado.
“Pode levar”, disse a senhora, que depois descobri ser uma estranha operária da assistência social dedicada aos órfãos e aos que aparecem na retórica dos políticos como sendo os menos favorecidos pela sorte — ou seja, aos fodidos da vida.
O gordo pegou novamente meu braço e me arrastou até o pavilhão central que, pelas grades no portão de entrada, senti que seria meu novo lar. Antes, ao atravessarmos o pátio, pude ver outros meninos que brincavam de bola em torno de um grande pinheiro enfeitado com luzes natalinas.
Chegamos ao banheiro. O gordo me mandou tirar a roupa, enquanto o negro trancava a porta. Aquela sala de banho recebia uma fina coluna de luz vinda da janela, toda molhada, exalava uma fedentina indescritível. Do lado dos chuveiros, alinhadas e com suas portinhas amarelas, as latrinas estavam atulhadas de merda. No começo, tentei segurar a respiração, aquele ar podre ardia nos meus pulmões. Tive que respirar — eis a maior danação humana: respirar. Comecei a tirar a camisa e levei de pronto um safanão do gordo que pedia pressa. Sem opção, coloquei meu pacote no chão e fui me desfazendo das roupas imundas e não menos fedidas do que as latrinas. Ao descalçar os sapatos cometi um grave erro. Deixei cair algumas moedas no chão. Rápido, tentei escondê-las. Mas o negro as viu. Eram trocados que mal dariam para comprar meia-dúzia de cigarros baratos. Enquanto o negro apanhava o dinheiro, o gordo tirou o cinto e misturou ao meu couro e sangue todos os seus recalques. E como ele era recalcado, meu Deus!
Apanhei muito. O cinto era de lona, na época usado por soldados do Exército, e tinha a ponta guarnecida por metais. Escorreguei e rolei naquele chão nojento, coberto por gosmas, úmido, ouvindo os palavrões do gorducho. As pancadas eram distribuídas “cientificamente” pelo meu corpo. Pegavam firme, soltando a carne dos ossos, em vergões desenhados pelo acaso em estranhas pinceladas abstratas. As piores eram as que atingiam a cabeça e a virilha. O bater é uma das mais antigas artes, sempre renovado em novas metodologias, sendo assim, consome energia criadora até mesmo das bestas. Ofegante, o gordo se cansou. O negro se aproximou e pisou no meu pescoço. O cara não tinha um pé e sim uma prancha dentro daquele sapato com sola de pneu. O que seria dessa arte do terror sem que seus estudiosos não se alternassem na administração de doses homeopáticas de maldades?
“Aqui, os internos não podem ter dinheiro. Não podem ter nada!”, gritava o negro, a guardar as míseras moedas no bolso da calça.
Não sei como, mas no momento seguinte o cara já me segurava pelo pescoço.
“Entendeu?”, vociferou o negro banguela.
De imediato, acertou-me um soco no estômago e me empurrou para baixo da fria água do chuveiro. Não me lembro se chorava, talvez gritasse, sem entender a gratuidade das atitudes daqueles operários da violência. Soluçava. Pânico... Era isso, eu era puro pânico.
Após a surra e o banho, não me enxuguei. Com cheiro de cachorro molhado, fiquei por algum tempo parado, encolhido e tremendo. O gordo supunha que eu o estava encarando. De fato, estava. Creio que nem mesmo quando minha cansada alma for amparada por Caronte, após termos remado no último dos rios, hei de esquecer a cara daqueles dois filhos da puta.(6)
Com um soco na cabeça, o gorducho me fez olhar para o chão.
“É assim que os internos andam aqui dentro, olhando para o chão e com os braços para trás”, ensinou.
Diante de convincente didática, o melhor foi obedecer. Outra virtude da miséria é nos tirar o orgulho sem nos deixar quaisquer resquícios de dignidade.
Segurando o pacote e minhas roupas contra o peito, olhando fixo para o chão, fui conduzido nu pelo pátio a outro pavilhão que servia de lavanderia. Estava frio. Os outros meninos pelos quais cruzava mantinham-se indiferentes. Mais um apenas.
Recebi um calção azul que me serviria de cueca, um macacão marrom de brim forrado de remendos e uma camisa cinza de algodão grosseiro.

Recentemente tive um acesso de riso incontrolável numa loja muito fina e famosa. Na vitrine vi uma camisa exposta, exatamente igual a dos nossos antigos uniformes, o mesmo tecido cinza anunciando desconforto, o mesmo corte sem imaginação. Depois de 30 anos e de ter vestido os filhos da miséria, acreditem, a maldita havia virado moda! A balconista sem saber a razão do riso até riu comigo. Depois, como eu não conseguia controlar-me, ela ficou me olhando com ar de desconfiança, por certo me julgava louco Sim, bela e gentil senhorita, bem guardadas no fundo do peito estão todas as razões do mundo para requerer vaga de Napoleão em qualquer hospício! 

Dos trajes antigos só fiquei com as meias e os sapatos herdados de um morto que nem conheci. Até mesmo a muda de roupa limpa, que estava no embrulho, herança de outro defunto, foi “confiscada” pelo gordo — talvez pensando encontrar ali mais moedas.
Passei depois pelo almoxarifado. Recebi de um homem manco, com a boca meio torta e de olhar triste, um pedaço de sabão, escova de dente, tubo de creme dental e uma toalha com a textura de lixa. Objetos de valia, mas que se tornaram um grande problema. Como portá-los, se no uniforme não havia bolsos? Mantive-os na mão.
Na seqüência, perdi todo meu cabelo na barbearia. O barbeiro de sotaque carregado, provavelmente cearense, vermelho, tinha um medonho bafo de cachaça. O corte não demorou mais do que alguns minutos. Veja que sorte: dei graças ao ter ficado com minhas orelhas. Muito bem, com os cabelos também dei adeus aos piolhos.
Normalmente, após cortarem o cabelo, os barbeiros costumam salpicar talco na cabeça de seus fregueses. Recebi minha dose de talco, um veneno para insetos nauseante e que ardia em contato com as feridas da minha novíssima careca e irritava-me os olhos. Tornei ao pavilhão. No segundo andar, fui guiado para um grande quarto que tinha por sobre a porta a inscrição “4ª Cia”. Num canto, outros meninos, já rapazes na sua maioria, se apertavam em frente à TV. Ao fundo, seis longas fileiras de camas. Mais ao fundo ainda, uma fila de armários. Atrás deles, uns vinte beliches.
“Você dorme ali”, disse-me o gordo, apontando a parte de cima do último beliche e dando meia-volta.
Subi no beliche e escondi sob o travesseiro encardido, desenhado com marcas de baba e sangue, a escova, creme dental, toalha e o sabão. O cheiro da cama se fazia insuportável. Provavelmente, ela havia recebido o mesmo talco do barbeiro. Ao pé havia um cobertor marrom e furado, apelidado de corta-febre, um verdadeiro trapo, que me acompanharia por longos invernos.
Fiquei ali por algum tempo. Deitado, tentava organizar as idéias. Não sentia fome, apenas um grande vazio no estômago; havia mais de quatro dias que não comia nada. Um ovo cozido fora minha última refeição. Incrível como nos acostumamos com a fome. A miséria tem a virtude de nos libertar dos apegos materiais, de nossos pequenos vícios, inclusive o de comer.
Impossível dormir. Meu corpo estava todo doído, a boca seca. Aproveitei a luz acesa para um pequeno balanço de minha situação física. O ombro e o joelho estavam inchados e meus punhos roxos e cortados. Levantei e fui ao banheiro. Urinei. Ardia e a urina saiu misturada a sangue. Tinha sede. Abri a torneira, lavei o rosto, a careca e bebi uma grande quantidade de água. O cheiro de merda continuava insuportável e vomitei de imediato tudo que havia bebido. Como a sede ficara maior, tornei a tomar água e desta vez não a vomitei. A miséria, em seu último estágio, faz-se acompanhar de supremas virtudes, como a de nos misturar com a imundice e fazer-nos indiferentes ao lixo e excrementos.  
Tornei ao dormitório e resolvi me juntar aos outros meninos. Eles continuavam reunidos em torno do aparelho de televisão e nem deram bola para a minha chegada. Com o estômago roncando, procurei não falar. Havia aprendido que em ambientes desconhecidos é mister ver, ouvir, ficar calado. Observei que os piás mais próximos da TV, sentados em bancos de madeira, trajavam uniformes diferentes. Camisas de algodão xadrez e calças de brim. Mais afastado, esparramado no chão, estava um pequeno grupo com uniforme igual ao meu, os “fujões”, como fiquei sabendo mais tarde. Juntei-me a ele.
O fedor de chulé cozinhava minhas narinas. Na tela, em preto e branco, o Papa Paulo VI proferia um sermão. (7) Não dava para ouvir nada do que o Papa estava dizendo, todos conversavam. Naquele lugar, o Papa falando ou uma vaca cagando daria no mesmo. O silêncio só se fez quando começou o filme estrelado por Audie Murphy. (8) Uma fita de guerra, dessas em que as balas do fuzil do mocinho jamais acabam.
Estava me distraindo. Às 10 horas, as luzes se apagaram e a TV foi desligada. Na porta, o gordo nos mandava dormir. — Bosta, o mocinho sobreviveria ao duro combate?
Sem reclamarem, os piás com uniformes diferentes foram para suas camas individuais. Enquanto os fujões caminhavam para trás dos armários. Escalei com dificuldades o meu beliche. Ajeitei-me o melhor possível para não atiçar as dores que aumentavam conforme eu sentia as ripas de madeira do estrado perpendiculares às costelas.
Na parte inferior do beliche deitou-se um menininho, com cara de índio. Ele não deveria ter mais de dez anos de idade. Daquela hora em diante conversa nenhuma se ouvia. Somente ao longe, dava para escutar o foguetório comemorando o Natal que se anunciava.
Fiquei muito tempo passeando da vigília para o sono. Não sentia fome. Não sentia cheiros. No meio da noite, entre um pesadelo e outro, entre um susto e outro, pensei vislumbrar vultos com cobertores escondendo suas cabeças e se aproximando da cama logo abaixo da minha. Ouvi pedidos velados de silêncio, ameaças de porrada, breves gemidos e voltei a dormir.








Capítulo III
Os louquinhos


Sentei-me
num claro de tempo.
Era um remanso
de silêncio,
de um branco silêncio,
anel formidável
onde os luzeiros
se chocavam com os doze flutuantes números negros.
F. G. Lorca

Formamos pela manhã. Eu continuava mal. Tivera hemorragia, perdera muito sangue. Felizmente, numa rara demonstração de sensibilidade, Fausto, talvez por ter sofrido tanto pelo mesmo motivo, já que era desdentado, retomou sua alma ao diabo e tirou-me da fila do trabalho. Esse ato de misericórdia, quase fez com que eu esquecesse da surra covarde do primeiro dia e o roubo de minhas moedas. Eis o encanto de satã ao conquistar o ignorante: guardá-lo no vazio do não se saber. E quem não sabe de si, não sabe do mundo, nada pensa; sem ser demente, faz as coisas e não se dá conta do bem ou mal que está realizando.
Enquanto o restante dos internos trabalhava, os louquinhos e os inválidos ficavam soltos no pátio, a perambular de um lado para o outro, ou sentados, às vezes mudos, às vezes falando barbaridades desconexas. Sentei-me à sombra de um jasmineiro. De lá foi possível observar um por um dos penados esquecidos por Deus e seus prestimosos auxiliares.
Zé Coqueiro, um autista, corpo de faquir indiano, de cócoras justificava o seu apelido. Sorrindo o doce sorriso dos alienados, o Zé desenhava numa rapidez incrível coqueiros com as pontas dos dedos na terra fofa. Terminado o coqueiro, ele o apagava imediatamente e num ato contínuo, outro coqueiro desenhava; milhares de vezes, infinitas vezes.  
O autista abandonado pela família deveria ter uns 15 anos e nunca recebera uma visita. Zé, porque não possuía registro civil. Coqueiro, sua assinatura para o mundo. Nem mesmo a assistente social desconfiava qual seria o seu nome verdadeiro. Um dia ele deve ter aparecido ali, transportado igual a um porco num carro de polícia ou ambulância, sem defesas e comunicação, como quase todos os louquinhos que estavam “estocados” naquele armazém de alienados.
Albino e com feridas na pele, chegou-se para perto de minha árvore o Treme-treme, menino da cabeça quadrada e olhos miúdos. Frank, como também era chamado, sofria de algo que eu nunca tinha visto. Involuntariamente, os seus músculos descontrolados o faziam tremer todo.
  “A...me...a...meu...”, balbuciava o infeliz e não passava disso, porque os músculos de sua face repuxavam e seu corpo tremia. Depois sorria e voltava a tremer, molhando-se com a própria urina e lambuzando-se com a merda que escorriam pelas pernas.
Novo na escola, Pingüim era entrevado. Com os pés virados para dentro, ele andava passinho por passinho. Não falava, apenas ria (o riso é a única propriedade dos loucos), exibindo restos de comida nos seus dentes acavalados.
“Punheteiro”, gritava um interno que passava.
“Filho da puta”, respondia aos berros o Sorvete, demente solitário que se escondia por detrás das árvores. Ali estava a única expressão possível de se ouvir da boca do pobre diabo. De resto, creio que Sorvete não sabia falar mais nada.
Com a cara cheia de espinhas e uma touca encardida listrada de verde e branco enfiada na cabeça, Sorvete colecionava figuras de mulher, dessas de revista, e se masturbava o dia inteiro; não incomodava ninguém, posto que não era tarado nem pederasta. O seu barato, punheta, nada mais.
Badu, um negrão retardado muito alto e forte, posava de defensor do Sorvete, assim como de todos os louquinhos. Bastava mexer com um deles e a resposta vinha na hora: um tijolo ou pedra sibilava por nossas orelhas, sem direção, pegasse em quem pegasse e a vingança estava feita. Por sorte, naquele dia, o tijolo não atingiu ninguém.
 Mesmo entre os louquinhos tínhamos líderes. Os goiabas mais antigos e com, digamos, alguma “inteligência” mandavam nos mais novos. Badu e Joaquim Maia estavam nessa condição e recebiam tratamento diferenciado dos outros louquinhos e até mesmo dos funcionários. Para se ter uma idéia do nível mental dos dois, basta saber que eles ficavam muito tempo no portão da escola num jogo absurdo. Joaquim Maia, de costas para a rua e para os carros que passavam, gritava o nome de uma cor:
“Verde!”.
“Vermelho!”, adivinhava o velho Badu.
O carro que passara não era verde nem vermelho, tinha outra cor qualquer! O interessante ainda é que este jogo de malucos não havia pontuação nem ganhadores. Depois de horas jogando, os dois simplesmente iam embora. Não sabiam contar.
Joaquim Maia tinha uns 30 anos, barrigudo e quase anão, sofria de epilepsia, com cardápio variado de ataques, que ia desde o convencional até uma grande corrida que terminava no alto de alguma árvore. Pensei que o louco exagerava e fingia, mas um dia ele teve dois ataques seguidos. Correu, trepou num pinheiro alto e lá em cima começou a se estrebuchar. Caiu, sangue para todo lado e fraturas expostas.
Esses eram os loucos permanentes, os da casa. Às vezes apareciam novos, surgidos sabe deus donde. Os marmanjos urinavam e cagavam na cama. Fediam por falta de banho.
Os aleijados, vítimas da paralisia infantil, viviam com os loucos. Os “motoqueiros”, assim chamados pelo uso das muletas, revelavam quase sempre a mesma história. No princípio, tratados pela família e parentes. Depois internados em hospitais e mais tarde abandonados no orfanato.
Não obstante suas deficiências, os motoqueiros demonstravam-se muito unidos e procuravam desenvolver atividades e propunham a si mesmos desafios. Assim, muito antes do Poder Público esboçar qualquer projeto de esportes para deficientes, eles se reuniam e disputavam jogos de futebol. As muletas de madeira se chocavam com violência e os que tinham apenas uma perna, envolta pelo metal dos aparelhos, arriscavam chutes na bola de meia ou borracha. Jogávamos com eles e os tratávamos como iguais, inclusive no trabalho e até mesmo quando o assunto era porrada. Eles brigavam entre si e com os outros internos. Desse costume, só posso dizer que uma muletada no pé do ouvido dói bastante.
Em número reduzido, existiam também os totalmente inválidos, praticamente paraplégicos. Braulino, um deles, mais velho do que os outros, usava óculos modelo fundo de garrafa. Como só tinha movimento nos braços, uma armação de ferro sustentava-o. Duro, andava de muletas e demorava horas para vencer alguns metros. Não tomava banho e cheirava mal. Também, como se livrar daquele esqueleto esquisito? Sem o que fazer, ele vivia sentado no jardim, e com o nariz encostado na Bíblia pregava absurdos apocalípticos, misturando apóstolos aos profetas e emendando textos para dar maior drama ao que falava. 
Não faz muito tempo vi o Braulino, cabelos brancos, esmolando nas ruas de Curitiba. Vivia por certo seu próprio apocalipse e de mãos estendidas esperava o final do mundo que, segundo ele, terminaria numa infernal fogueira.
Tentei várias vezes fazer uma escala de intensidades para o abandono. Tenho muita prática nisso, passei pelos dois lados desta praga que nos sufoca o espírito. Qual deles seria o pior e qual deles seria o menos grave? Inútil qualquer resposta. O abandono é isso: abandono. E a escala se faz no coração do abandonado e na consciência atormentada de quem abandona. Ao analisar minha história e de centenas de meninos que viriam a conviver comigo, conclui que as famílias, os pais ou responsáveis legais, ao abandonarem seus filhos podem ser guiados a mais das vezes por três motivos básicos: o econômico, desajustes familiares e preconceitos sociais. Esses motivos não raro aparecem juntos. Veja bem, eu parto de observações puramente empíricas que me chegaram aos sentidos, sem a ciência dos números e estatística, desprezando as variáveis psicológicas, que por elas mesmas dariam um grande tratado para um pesquisador que esteja disposto a executá-lo. Eis aí uma sugestão de nome para a dissertação: “Tratado do abandono, perfil sócio-psicológico das crianças abandonadas e seus progenitores”. Legal, né?!
Os mais comuns de serem encontrados num orfanato são os abandonados por motivo econômico combinado com o desajuste familiar. É o pai e a mãe que não têm como sustentar os seus, por falta de trabalho ou renda, além de uma grande dose de ignorância provocada pela baixa escolaridade. Na falta de recursos econômicos, os laços que unem o frágil núcleo familiar simplesmente são rompidos, seja pela fome, seja pela miséria, depressão ou loucura decorrentes. Imediatamente, os membros dessa família são empurrados para a marginalidade, delinqüência, alcoolismo, drogas e agressões mútuas. O próximo passo é a desagregação familiar. Os adultos, quando não presos ou mortos, somem pelo mundo, deixando sua prole ao deus dará. Veja, caro leitor, que aqui falo da família comum, com papéis bem definidos de pai e mãe.  Mas o mesmo se repete, e de forma mais dramática, em proles sustentadas apenas por um desses atores.
Nos desajustes familiares também incluo as causas naturais como a morte ou doença dos provedores e ausência de parentes e amigos da família para a adoção. Mas esses são casos raros nos orfanatos, se comparados aos anteriores. Dos internos que conheci, poucos se diziam realmente órfãos.
Por último, temos o preconceito social. É a mãe solteira que por motivos “morais”, religiosos, ignorância — a própria, dos seus pais ou companheiro — insiste na gravidez e é obrigada a abandonar a coisa que se fez em seu útero. É a gravidez indesejada de mulheres adolescentes ou das que caíram na vida. É o patrão que dormiu com a funcionária, amante ou empregada e para amenizar o escândalo força a mãe a entregar seu bebê para instituições de caridade.
Assim, creio, que é muito difícil de se saber qual dos abandonos é o menos cruel. Todos têm um grande grau de crueldade que culmina numa culpa tremenda naquele que abandona e um enorme complexo de rejeição no abandonado.
Felizes eram aqueles alienados que não tinham consciência de suas condições. Pobres aleijados que se sabiam punidos duas vezes pelo terrível crime de terem nascido.
Naquele tempo brutal, sempre ao final do dia, como já era costume, ônibus despejavam levas de meninos na escola. Não eram fujões e sim órfãos vindos de outras instituições, geralmente religiosas, que haviam completado a idade de 10 ou 12 anos. Prudentes e pudicas, as freiras só cuidavam de seus órfãos masculinos até o início da adolescência. Por certo, evitavam assim o apego demasiado e outros pecados menores.
 No internato, esses meninos tinham singular comportamento. Dóceis, raramente desobedeciam, acostumados que estavam com a orfandade. Eles se tratavam como irmãos, posto que se conheciam desde o berço. Dispensados do rito de iniciação, logo esses guris estavam o uniforme da 1ª Cia e brincavam descontraídos misturados aos outros no pátio.
Mais tarde fiz amizade com alguns deles que atendiam por apelidos numerais. Assim tínhamos o “Trinta” e o “Vinte Oito”, números pelos quais foram identificados nos antigos orfanatos. Os dois, um Manoel e o outro Manuel, sentaram praça na Marinha de Guerra ao deixarem Campo Comprido, isso muitos anos depois.
O Trinta contava que não conhecera a família. Desde nenê no orfanato das freiras, entrava seguidamente na fila de adoção. Negro, sempre preterido. Os casais que por lá costumavam procurar “filhos” davam preferência aos brancos e loirinhos. Dizem que o marinheiro morreu em serviço ao tentar salvar pessoas que se afogavam no rio Paraná. Não duvido, ingênuo, perverso às vezes, possuía grande alma.
Antes do jantar, os funcionários fizeram os arranjos para dar equilíbrio às companhias. A terceira e quarta contavam um número reduzido de alunos, com muitas camas vazias, ao passo que as outras duas companhias estavam lotadas com os novos que não paravam de chegar. Muitos foram promovidos.
As vagas na terceira e quarta companhias apareciam porque os que completavam 18 anos deixavam a escola. Esse processo demonstrava-se tão doloroso e incerto quanto o de entrada no orfanato. Todos os anos formavam-se dezenas de sapateiros, alfaiates, gráficos e padeiros, com um nível de escolaridade muito baixo. As assistentes sociais arrumavam-lhes emprego. Ainda na condição de internos, esses rapazes ficavam por ali por mais três meses até juntarem algum dinheiro. Depois eram encaminhados para uma modesta pensão particular, com direito a simplório enxoval: lençóis, fronha, duas camisas e uma calça.  
Desamparados, recebendo salários miseráveis, solitários, desajustados e extasiados com a repentina liberdade, os egressos do orfanato praticavam besteiras. Perdiam o emprego, roubavam e acabavam presos em menos de um ano. Poucos eram os que realmente encontravam um novo caminho na vida. Acompanhávamos as notícias que vinham lá de fora e ficávamos inseguros quanto ao nosso futuro, se é que assim poderia ser chamada aquela desgraça anunciada.
Não é à toa que alguns internos tentavam não deixar o internato, mentindo a idade e fingindo insanidade mental, caso do João Louco, que todo mundo desconfiava que não era louco porra nenhuma, mas vivia entre eles. Tínhamos vários alunos em condições semelhantes. Velhos, alguns com mais de 30 anos, que procuravam em si alguma utilidade para o sistema montado na escola. Os “peixes” da direção realmente eram úteis. Funcionavam como amortecedores entre o peso da ira dos funcionários e a nossa fragilidade, assumindo funções de monitores ou até mesmo de servidores contratados. Três deles eram muito antigos na escola, com direito a salários e moradias especiais.
Valtinho morava próximo à horta com a família, mulher e dois filhos. Magro e pequenino, contava uns 55 anos de idade e ainda jogava muito bem futebol, um craque. Ele dedicava-se aos serviços gerais, encanamentos, reformas, etc. Nas horas vagas, cuidava de pequena horta e de seu galo de briga, que um dia roubamos e cozinhamos com abóbora (ficou um horror, a carne dura dispersa numa gosma aguada doce e amarela; fome ignora os olhos, e comemos tudo). Ele nunca descobriu quem foi, mas garanto que caso isso ocorresse sua vingança seria medonha, dado o apego de Valtinho ao bicho.
Zelas, o zelador, contemporâneo de Valtinho quando esteve internado, sofria de epilepsia. Morava num cubículo imundo do lado da 4ª Cia. O material de limpeza que estava sob sua guarda se misturava a roupas e pertences embolados por sobre a cama repleta de manchinhas de sangue das pulgas esmagadas. Contrariando o nome e a função, Zelas não zelava por nada, já que os imundos banheiros teoricamente estavam por sua conta e pelo estoque de desinfetantes, pastas vassouras e sabões em seu quarto, via-se que o problema de higiene na escola não era a falta de produtos de limpeza, era preguiça mesmo. Vivia batendo papo, defendendo posições absurdas em discussões vazias com alunos e outros funcionários. Contava-se que fora noivo e que abandonou a idéia de casamento depois que descobriu que a noiva era fã do Tarcísio Meira. Numa noite ao visitar sua futura senhora, ele foi solenemente ignorado até o término do capítulo da novela. Nunca mais voltou. Sorte da moça.      
Venâncio, o homem manco, com a boca meio torta, exercia a função de almoxarife. Quieto, realmente triste, morava num quartinho isolado. Escravo de doenças, logo após minha chegada morreu. Acompanhamos o enterro. Naquele dia de chuva, o caixão simples desceu à cova sem choros e lamentações. Parente algum deixou na tumba suas lágrimas. Viveu órfão, morreu órfão.





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