quarta-feira, 28 de julho de 2010

Nemo

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o tico-tico.
Luís Gama

- Nemo é nome de peixe -
Esboça em sua sabedoria
A menininha para este velho
E miserável poeta.

Digo-lhe em minha sapiência
Ganha a duras penas
Das traças das bibliotecas:

- Houve tempo, no tempo de Nero,
No tempo em que nossa língua
Nem existia e Portugal ainda dormia,
Que "nemo" significava ninguém.

 - Mas, como alguém pode se chamar ninguém!?! -
Duvidou a infantil mocinha, fã de desenhos animados.

- Qualquer pessoa pode se chamar ninguém.
E garanto: ser nemo na ordem universal
É nosso estado absolutamente natural!

A infanta me olhou, franziu a testa e emendou:
- Nemo bobão!

Dá o mesmo trabalho, vivente!

Gastar a vida na multidão
Gastar a vida sendo você

Gastar a vida na ignorância
Gastar a vida no conhecimento

Gastar a vida no rancor
Gastar a vida no amor

Gastar a vida em coisas menores
Gastar a vida em que vale a pena

Gastar a vida esperando a morte
Gastar a vida vivendo apenas.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A palavra

A palavra para dizer tudo
Que precisa dizer a palavra
Deve ser cunhada num poema
(Invariavelmente recolhido
No silêncio dos livros!).

Em seu gosto e sabor
Deve ser açucarada na ponta da língua
Mesmo se nascida em amargo peito contrito
E vomitada por desprovidos de espírito.

Algumas vezes
Deve ser paina só e esvoaçante
Pelo céu em tarde quente
E de calma, calma brisa.

Outras vezes
Deve ser a trovoada - com cuidado! -
Porque o raio na tempestade
Fulmina a verdade do verbo.

Sempre, sempre
Deve desprezar os penduricalhos
Os enfeites de última hora
Que lhe dão falso brilho.

E pela eternidade
Deve ser densa em sua precisão
Porém suave no significado
Para não machucar os dicionários.

sábado, 24 de julho de 2010

Vento na macega

"Ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços".
Fernanda de Castro in 

"E Eu, Saudosa, Saudosa"


Ame, triste moça! Ame, pobre pirralho!
Amem! Amem ao infinito, jovens e velhos!
A vida afora amar não pode ser algo
Além de daninha erva a espera da sega.

Amem! Proclamem algures e alhures a pessoa amada.
Gritem! Pode ser clamor avulso e perdido na tarde.
Importante que o amor a todos seja gratuita dádiva,
Porque se abrasada, toda macega na ventania arde.

Assim, que nos incendeiem os estrênuos ventos
Por este mundo feito de tumulto e tempestades.
No amor sabemos que não somos bem seguros,
Sem amor somos no mundo o conteúdo do nada.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A felicidade é polaca

Doirada toda até nos mais escondidos pelos
Por sobre uma pele arrepiada em puro rosa,

És albinua sob a Lua,
És o lume do meu Sol,
És a minha lúdica polaca.

És aquela que grita lá da cozinha
Inda esfaimada, em pelo, sem pudor:

- Estou fritando "maréco", amor!

E doiras na intensa chama a ave
Que, na cama, darás a comer
A este poeta que sofre no torpor
Da anterior extenuante cruzada,
Mísero sarraceno sobrevivente 
Do mais loiro dos incêndios.

domingo, 18 de julho de 2010

Carta de mundo distante

Sonhei ontem ter recebido carta tua, grata amiga.
Vê o quão reveladores podem ser os sonhos,
Em especial, esses que conosco envelhecem!

Quem hoje ousaria escrever cartas, estimada minha?
No máximo um e-mail, um SMS, mensagem de celular.
É, o mundo mudou, não há mais Código Morse,
O plec-plec-plec nervoso dos galopantes telégrafos,
Somente há o infotráfego sequencial em óticas fibras.

Somos cidadãos do mundo e instantâneos.
Ganhamos mais tempo para perder mais tempo,
Essa é a verdadeira lei a nos reger os dias.

Mas eis o que te dizia: recebera perfumada cartinha,
Dessas que vinham em leve envelope par avion
E com as bordas nas cores de nossas vidas:
Liberté, égalité, fraternité. (Lembras disso?).

No papel tu descrevias vários países da Europa,
Os cafés de nossa luminescente e belíssima Paris,
Homens preocupados com mais uma crise econômica
E contava que tua missão na ONU estava terminada.
Tudo acabara, requereste aposentadoria e descanso.
A Amércia Central feriu-te e deixou-te o coração fraco,
As guerras no Golfo e nos Balcãs foram-te a gota d'água.

Mas, que sonho triste e besta. Simplesmente, tu não mais existes!
Sumiste na fumaça do ataque a bomba, covarde e terrorista.
Foste e deixaste os velhos sonhos numa carta possível,
Porque somente os mortos podem escrever para os mortos.
E depois, tenho que te dizer, há tempo não abro a caixa dos correios.
Para o bem de minha saúde, desisti completamente de esperar
Neste mundo em chamas, a ranger os dentes, notícias que valham a pena.

O pano que nos cobre

Não sei se Bandeira disse, mas deixou latente:
A maioria dos poetas reescreve seus poemas,
Seja logo após escritos, no prelo ou pendentes.
São vestidos de festas que devem ser revistos.

O poeta, alfaiate atento ao pano cosido,
Sabe que sempre cabe um ponto novo,
Um alinhavo, uma lantejoula, uma cava,
Naquilo que há dito, porém obscuro.

Ah! São tantas as festas, tantas divas
Disputando as mesmas blusas e saias,
Que o poeta junta panos com cega agulha:
Corisco no céu a bordar estrelas nuas.

Há poemas que exigem trajes de freiras,
Mui pudicos como anjinhos de sacristia,
Porque falam de coisas de sério respeito,
D'alma, de Deus, da morte e seus ofícios.

Há outros que nos saem peladinhos ou seminus,
Impróprios, na devassidão e luxúria implícitos,
Que deixam a bunda e seios da amada expostos
Porque o amor é para o poeta única sina e vício.

Há poemas que exigem apenas vestes comuns,
São os escritos de exercício, calmos e sisudos.
Para esses, costuramos uniformes de trabalho,
Macacão de operário, ou um terninho rústico.

Mas fato é que, seja a poesia de qualquer tipo,
Ela sempre há de nos exigir atenção e labuta,
Às vezes no temível arremate capenga ou bonito,
Ou nos "as"  despidos da crase, esta filha da puta!

sábado, 17 de julho de 2010

Meu coração

Não mais pulsarás
Vou te congelar
Numa câmara fria
Usando a criogenia
Dos adeuses
Das barregãs perdidas
E das amantes
De um único dia.

Não mais baterás
Pelas belas mulheres
Pelos perfumes alucinantes
Pelo amor terrível
Em outros peitos lascivos.

Não mais sentirás
Encantos
Nos oblíquos olhares
Nos sorrisos dissimulados
Nas formas de feitio feminino
A chamar-me para o pecado.

Serás apenas um enfeite
Da vida meu pingente
Frio como o vácuo das trevas
Inerte como solitária erva
Que alegra este mundo
Porém, estática,
Às criaturas serve de pasto.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

De esquina

Vou ver se te esqueço lá na esquina.
Depois do chope,
Deixarei toda saudade na latrina.

Vou ver se te esqueço lá na esquina.
Depois da dor,
Outros amores, eis a nossa natural sina.

Vou ver se te esqueço lá na esquina.
Depois do vinho,
Dormirei na casa de suspeitas meninas.

Maltratos do tempo



A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus.
Vinicius de Moraes

Desejo tolo,
Impossível e tolo,
Vê-la novamente
Na mesma juventude,
Em igual meninice
Que hoje é perdida
Na noite dos anos.

O tempo nos maltratou
Tanto, tanto e tanto quanto
A leve água em velha rocha
Mortificada na areia fina.

Somos gastos, este é o fato
E para isso não há conserto
Ou salvadoras cirurgias plásticas.
Reforma-se a pele,
Jamais a alma em andrajos.

De resto, o que nos resta,
É o desespero
Contra essa ordem
Violentamente natural:
Todo nascer
É o princípio da decadência
E beber da vida é morrer
Num requinte perverso,
Lentamente, aos golinhos.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Sou substância e palavra

Sou substância e palavra,
A junção de químicos elementos,
A vida pensada pelos deuses
Que se alimentam de vento.

Minhas células nunca dormem
Nem dormem meus pensamentos;
Há horror no roubo dos elétrons,
Há temores naquilo que faço e penso.

Minha palavra é impulso fotônico
Moldado em ancestral gramática
Dos que passaram pela vida
A juntar primitivos grunhidos aos fatos.

Meu amor, meu ódio, meu silêncio,
Meu querer, meus distanciamentos
Podem ser mensurados pela elétrica
Pulsão do coração e seus batimentos.

Quando rio, sou o riso dos mésons discretos.
Quando falo, sou o falar dos compostos.
Quando penso, sou o pensar dos fótons.
Quando vivo, sou dos átomos o triste gesto.

domingo, 11 de julho de 2010

Ao pé da serra

Denso, mas transparente
Como uma lágrima...
Quem me dera
Um poema assim!
Mário Quintana


A translucidade da fria cascata
Aproveitava-se das sombras
Para refletir no fundo do rio
A nudez angélica de teu pudor.

Ao longe, os morros da serra
Espiavam nossa ingênua natureza
Feita de inocentes brinquedos,
Espumas sobre as duras pedras.

Nossos lábios gelados aqueciam-se
Em beijos refrescados pela torrente
E dispensavam, assim, toda palavra
Que, em desdém, o puro amor rejeita.

Livres, naturalmente libertos e leves,
Amava-nos sobre a rubrocidade
Do pejo do espelho que nos tinha presos
Em abraços abrasados nas águas imersos.

sábado, 10 de julho de 2010

O monge na cela

Logo agora, que me dedicava à vida monástica
E como um monge perambulava pelos jardins
Recitando elegias de malditos e ateus poetas.

Logo agora, em que resolvera renovar os votos
De amor à antiga companheira, à solidão plena,
E desacreditar na verdade dos amores das fêmeas.

Logo agora, tu me apareces a confundir-me as preces
Balbuciadas em lábios trêmulos em que pende o cigarro
A fumar, após o pigarro, meus pensamentos indecentes.

Logo agora, vens iluminada apenas pelo branco da pele,
Nua, sem nada, ornada somente com o doirado dos cabelos...
Nua, na noite, abandonada na cama de lençóis incandescentes.