segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Do tempo

Quanto mais se vive mais nos aproximamos da certeza de que o tempo é um senhor sem razão e mormente sem sentido. De todas as criaturas, só nós conseguimos contá-lo em relógios e calendários. O tempo é a nossa pior invenção, porque é nele que contamos os que esperam vez e os que aqui já não mais estão.

A voz que me fala

Somente um monge para saber
O que guarda o silêncio das celas
Acordo, tomo um copo d'água
E recupero-me do medonho susto
De ter pensado escutar no silêncio
A voz do pensado. Sim, a voz minha
Que me falava em sonho e dizia
Que neste planeta não há esconderijo
Para se fugir da vida e suas vontades
Mesmo numa cela, isolado de tudo
Somos atormentados pelas lembranças
Não as vividas em realidade
Mas, as não vividas por falta de coragem

Em exatidão marcada pelos séculos,
Em ponto, no cravar das horas
O mosteiro acorda e contrito ora

Sigo as ladainhas no velho missal
E rezo para ouvir novamente
A voz que vem aqui de dentro
Embargada pelo silêncio do tempo
A silenciosa voz soprada por Deus.


Poema da madrugada

Minha poesia cultiva antigo costume
Aos berros acorda-me de madrugada
E sem cerimônia manda-me cantar
Novas cantigas de manter acordado

Não queira escutar, Cariño meu
Os gritos de minha poesia noturna
É uivo de cachorro louco, danado
Uivo de susto, de alma penada

Por isso levanto-me da cama devagarinho
E vou para a biblioteca escutá-la só
Não quero te acordar, Cariño, não quero
Pois não saberei explicar o que me acorda

Ela vem e dita-me coisas impossíveis
Outras vezes, muitas vezes, terríveis
Palavras soltas, versos avulsos
A descrever vultos e monstruosidades

Mas na manhã que se segue me vingo
E pego todos aqueles versos de medo
E os transformo em coisa calma e boa
Como a suavidade dos teus leves beijos.



domingo, 30 de dezembro de 2012

Teu cheiro

Estou sob o domínio do olfato.
Daquele perfume que gruda na memória, 
Que te impede de lavar as mãos 
E que se revela até em sonhos inconfessáveis.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Dos adjetivos

A morte dispensa adjetivos
Nunca será boa ou ruim
É a morte, apenas fim

Somente a vida merece qualidades
E depende unicamente de ti
A palavra que será anteposta
Com justeza ao que se viveu.

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Ilustração: Cézanne - Pirâmide de crânios.

Dolorosa via

Não importa o caminho
Todo caminhante nesta vida
Chegará em exatidão
Ao encontro marcado
Mesmo que nos neguemos
A andar, a seguir adiante
E passemos a vida dormindo
Amarrados ou sentados

A vida nos empurra
Com a chibata do tempo
Na cadência do relógio
A nos rasgar a pele

Seguimos macabra procissão
Com os pés descalços
Sobre pontiagudas pedras
Com nossas cruzes
E coroas de espinhos
Em via dolorosa
Calvário acima
Onde nos aguardam
Os afiados pregos
Encomendados à eternidade
Interrompida no último estalo
Do tempo que nos escapa.

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Ilustração: Cézanne

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Natal dos patifes

No Natal, até mesmo alguns grandes patifes têm por míseros segundos a caridade no coração. Vaidosos, transmitem pela televisão, avisam pelo rádio e publicam no jornal magna e repentina vontade de ajuda ao próximo, desde que isso lhes renda o marketing que irá arrancar fingidas lágrimas de solidariedade dos hipócritas e suspiros de esperança nos desgraçados.

O pó das pedras

Fútil e convencional
Tu andas pelas ruas
E a realidade te fere
Como agudo punhal
Estás pronto, pronto
Pronto para morrer
De medo e susto
No próximo minuto

O céu descolorido
Por certo não irá
Ao teu sepultamento
O céu descolorido
Não gosta de estúpidos
Fúteis e convencionais
Em susto e medo

Há um ódio neste céu
Tremendo ódio
Deste céu por ti
Há desprezo descolorido
Desdém guardado
Deste céu por ti

O relógio te esquece
E o tempo te cobra
Os minutos por ti
Jogados fora
Como inútil e fina areia
Em infinito deserto
Tão farto do pó das pedras

Até este minuto
Que te é o último
Cheio de fútil susto
E convencional medo
Ele te pede de volta.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Fim do mundo

Manhã de Sol morninho prometendo calor de Verão. Vento suave, indo e vindo. Ao longe um chamar de passarinho... É meu amigo, essas coisas embrulham a vida em pacote de presente... E quer saber, acho que este mundão nunca acaba não.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Reflexões - Deus e as religiões

I.
O problema do ateu, aquilo que o faz ateu, não é Deus em si, mas o uso que os homens fazem de Seu nome.

II.
Amor e tolerância deveriam ser as palavras a nortearem qualquer tipo de religião que objetive a paz entre os homens. Do contrário, é isso que estamos vendo, ódio, guerras e o inferno sobre a Terra. É impossível aos sensatos, mesmo que em esforço de fé, o credo num Deus que não ama e tolera.

III
O Deus utilitário e disponível para qualquer coisa e desejo, ora numa súplica de vingança, em prece de ódio, ora para justificar uma guerra, não é Deus. Ele não se prestaria a essas coisas forjadas em doente egoísmo e que determinam a barbárie.  

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Cataléptico eufórico

Preciso da sanidade dos loucos
De suas certezas inexistentes
Cansei-me da loucura correta
Quero a loucura incerta

Não mais obedecerei a horários
E farei meu próprio calendário
Composto de dias sem noites
E com noites sem dias também

Vou misturar em mim, em ti, tudo
Leite, manga e melancia,
Crendices com filosofia
Euforia com catalepsia

Serei do avesso o contrário
Do contrário o avesso também
E quando ouvir de ti louco grito
Gritarei aos teus ouvidos amém

Quero sim a loucura
Que enche nossos doidos olhos
E neste mundo louco
Quero ser louco também.

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Ilustração: "A nau dos insensatos" - J. Bosch

(1450-1516)



quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Mãe

Quando dei por mim já vivia triste
Em criança, com três ou quatro anos
Já sentia estranhas saudades

Tinha saudades de minha mãe
Embora só a recordasse até os joelhos
Pois, além não alcançaram meus olhos

De resto, das saudades de minha mãe
Sobrava-me um rosto que inventei
Muito branco, de um severo que sorri

Ela vestia-se com um vestido colorido
E tinha em suas mãos inventadas e lisas
As minhas em tremor sempre suadas

Lembrava-me de todas suas histórias
Que, por sua falta, eu também inventara
Lidas com carinhos em noites temerosas

Sim, a ausência de minha mãe logo cedo
Fez-me amar a poesia que tudo pode e inventa
Inclusive uma mãe da qual não se tem memória.

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Ilustração: Mãe com filho doente - Picasso

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A música que vem de longe

Estranha noite. Os cães não ladram. Um quase silêncio de mistério no ar. E lá do alto do morro, da casa da louquinha que fugiu do hospício, escuto bem baixinho uma música de Wagner.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Enganos do silêncio

Engana-se quem pensa encontrar o puro silêncio na noite ou no próprio sono. É nesses momentos de aparente tranquilidade que a nossa consciência trava um grande debate conosco e geralmente aos berros, na vã esperança que um dia nós a escutemos.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Peso nas costas

Não meus amigos, não são os anos que nos pesam e nos deixam com as costas curvadas, com os braços quase ao nível do chão, num arrastar como veteranos macacos. A injustiça sim, nos pesa. E pior, junto com a injustiça, é-nos demasiado peso essa percepção de que pouco fizemos para acabar com tudo que nos fez insanos dentro da insanidade.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Vou com a ventania

Vontade de sumir na ventania
Sentir no rosto o vento forte
Como as andorinhas
Fugir por uma fresta do mundo
Rasgar o céu
E ver lá do alto a Terra distante
Com suas maldades
Com seus descontentamentos
Vazar a cortina do firmamento
Ver o outro lado
Sentir o vento que lá venta
E abraçar aquela estrela
Como se abraça um amor distante
E que nunca mais mandou notícias.


Corpo fechado

Sou bento sim senhô
De corpo fechado
Pelo benzedô
Benzido com água benta
Com a alma abençoada
Pela Santa Virgem
Senhora da boa morte
E dos bons caminhos
Lá em Aparecida do Norte
Sim, respeito de um tudo
Praga de madrinha
Olho gordo, coisa feita
Mas respeito mais ainda
Reza das bem brabas
Sem salamaleques
Sem ladainhas
E que me guardam
Todos os meus dias.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Riso à toa

Amanheci no um sorriso besta no rosto
Sonhei, por certo, algo bom
Sei lá o que sonhei, não lembro

- Só consigo lembrar de pesadelos -

E rio, rio à toa, o riso dos tolos
Que riem de tudo sem saber
A razão do riso. Riem, apenas riem
Porque diante dessa tragédia
Que chamamos vida
Só nos cabem o escárnio
O riso dos bobos e dos imbecis.

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Ilustração: The court jester, obra do pintor norteamericano William Merritt Chase (1849-1916), que mostra as travessuras de um bobo da corte

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Nome às estrelas

Desejo enorme de não ser deste mundo
Quisera, sei lá, ser de outra galáxia
Num planeta que orbita dois sóis
Com praias infinitas e ventos tranquilos

À noite, olharia para as várias luas
Contaria estrelas dando-lhes os nomes
Daqueles que meu ombro abraçam

Lá, cada dia duraria séculos
E meus amigos seriam eternos
E cantariam sempre, compondo
Canções que falassem apenas do encontro

Ou acalantos para um deus menino que dorme
Jamais canções em acordes menores
De tristeza, de distanciamento dos que morrem.