segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Crê, a existência é o agora

Tu crês em coisas que não existem
Futuro, amanhã, semana que vem
Depois, mais tarde, ano que vem

Vê bem, o que existe é o agora
O hoje, o presente, neste minuto
Tudo que tu quiseste algum dia
Sem a certeza de existires nele.

Aprende: o futuro é dos deuses
O presente é teu, somente teu.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Thalia

José Júlio de Sousa Pinto - Museu do Chiado
O tempo vai passando
E nossos corações
Juntando antiguidades
A roseira que nos espetou
Ainda na infância
O pé de primavera
Que nos ensinou
O que era Primavera
O caminho da escola
Longo nos primeiros passos
Tão curto hoje
As cantigas de roda no recreio
A professora severa
Tuas tranças sobre a carteira
A caneta-tinteiro
Que deixava tudo em lambanças
E aquelas letras tortas
Garranchos caprichados
Sobre o caderno de caligrafia
Em que escrevi teu nome.

Susana

Quando bateste na minha porta
Naquela fria e solitária madrugada
Com uma garrafa de vinho
E disseste que fugia de longa solidão
Disse-te bobamente
Que não obstante a companhia
O máximo que poderíamos fazer
Era juntar o que se faziam sozinhos
Em torno do vinho
Louca, louca, insana mesmo
Como é que tu querias
Juntar coisas que não se juntam
Sem a cola do amor à vida minha?
Atração física é cola fraca
Pouco junta e se junta
O tempo com a junta acaba.
Tomamos o vinho e outro vinho
Até que ele nos dissesse
Que a solidão traz consigo
Grandes inconvenientes
Dentre eles, a cama fria
Que tu deixaste quente.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Epitáfio

Aqui jaz um miserável poeta 
Que gostava de fêmea
E escutar samba e jazz. 
Se você veio me visitar 
E for mulher, não se avexe não, 
Dance sobre a cova, 
Sambe sobre meu caixão, 
Mas se for homem pode se mandar, 
Não gosto de marmanjo não.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Coração afinado em Sol bemol

Em Sol bemol batia seu coração, Depois... Ah depois... Beijos
Entrelaçados como notas
No papel pautado
E nossos corpos em sintonia
Buscando em gemidos
Todas as oitavas
Que compõem nossa canção de amor. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Confissões de um andarilho I - O Café

Tenho muito frio quando durmo
Mesmo no Verão
E cubro-me com mil cobertores

É que no dia mais frio de 1975
Nevara em Curitiba
Enquanto o resto do Paraná morria
Com a geada negra

Dormira naquela noite ao relento
Ao lado de uma estrada
Dentro de um saco de herbicida
Sob um pé de café

Na manhã seguinte
Acordei não me acreditando vivo
Com o corpo de criança enrijecido
Gritando fome e desejando um café

Sim, sim, um café quentinho, um café
Como me fez falta um pouquinho de café
Depois da noite em que a morte tocou meus ossos.


Resignação bovina

Sete da noite e os operários
Começam a chegar as suas casas
Trazem da fábrica o olhar da servidão
Da resignação dos bois que puxam muita carga
Mas, quando ainda no portão,
Abraçam suas mulheres, suas famintas proles
E estranhamente sentem-se novamente humanos
Por um breve momento
Ganham a esperança
Pelo menos até a manhã seguinte
Quando voltarão a trilhar os caminhos
Que os levam ao matadouro.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A tábua das marés

Vou com a maré
Para qualquer porto
Para onde a onda quebrar
E nas vagas e vagalhões
Não se há de ter medo
Esse mar é só descaminho
Perigo e angústia
Há de se acostumar a isso
Há de seguir a maré
E agarrar-se a tábuas
E troncos flutuantes
O importante mesmo
É neste mundo respirar.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Confissões de um andarilho II - Evocação de Santa Bárbara

Sim, todas as minhas memórias
São molhadas de chuva
Sim, falo contigo hoje, neste lugar
Porque uma distante chuva
Dessas que marcam a infância
Aqui me trouxe em carne e osso
Era uma chuva anunciada no horizonte
Medonha. Daquelas de pedir aos céus
A proteção de Santa Bárbara
Andarilho aos 12 anos de idade
Com medo, abandonei a estrada
Entrei numa cidade e por lá fiquei
E de lá dei com os burros na capital
Mas nesse meio há outras histórias
Que canto nos meus cordéis
A importância disso?
É que a chuva nos empurra igual
Pedaço de pau, galho seco
Na enxurrada, pelos rios
De enrosco em enrosco.
Aqui estou enroscado há algum tempo
Enfeitiçado pelos olhos de uma cobra d'água
Pelos carinhos de uma bela dona
Só espero que a chuva que cai não me empurre mais
É que já me acostumei com o barranco
Com as árvores que plantei e fiz crescer
Se as águas insistirem na violência
Pedirei novamente à Santa Bárbara
O alívio da tempestade que não pára
Nos beijos da minha boa amada
Amuletos para espantar essa aguarada.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Bandeira na prateleira

Estava lendo Manuel Bandeira.
Olhei pela janela 
E um raro Sol curitibano 
Chamava-me para a rua, 
Para o sambinha da tarde de domingo. 
Desculpe-me Bandeira, mas tu, hoje,
Voltas para a prateleira.

Dois dias

Tem gente que uma vida toda
Não vale uma saudade, 
Mas outras temos, que apenas dois dias 
As fazem em eternidade.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Horário de Verão

Meu relógio parou
E ainda me mostra
O Horário de Verão
Ah! Hora tão triste
Foi aquela que tu disseste não
Não vou dar mais corda nele
Pois há mais corda
No meu coração
Que bate, bate amalucado
Querendo parar não
E assim vou vivendo essa vida
Sem saber que horas são
Porque meu coração é meu tempo
E por ti não para não
Tic, tic, pac, tic, tic, pac
Amar é pedir perdão.

Inoubliable

O mundo e suas voltas
Quantas hão de rodar?
Anos, décadas
Por que tanto demorar?
Teu beijo
Escondido veio vivo
Para não ser esquecido
Jamais

E você no mais branco neve
E tão quente, femme chaude
Na pele e por dentro

Teu gosto na minha língua
Vai se expressar pelos meus dias
Parfum  inoubliable
E teu rosto
Vai ser minha lembrança do gozo
Extase memoráble.

Hoje não tem samba

Hoje não tem samba
A pista está vazia
As cadeiras sobre as mesas
E o músico dorme num canto
Deixou seu canto pelo gole
Queria tanto dançar
Aquele samba bem miudinho
Aquele samba prometido
Para ti e nunca dançado
A noite, querida minha,
Desconhece promessas
E no seu escuro tudo esquece.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Choravas baixinho

Olhava para branca Lua
No céu repleto de escuridões
E abismos ao invés
Ao longe te vi só pela praia
Com as águas acariciando teus pés
E no silêncio entre as ondas
As vagas me trouxeram seus ais
Choravas baixinho
Assim como eu também chorava
Na manhã que se anunciava
Uma infeliz ave de lata te levaria
Para além daquele mar
Que nas pedras e em nossas almas
Quebrava-se, batia-se e bramia.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Vou-me

Desaparecer para sempre
É meu jeito de dizer adeus
Vou-me
Nunca mais me verás
Pássaros com asas quebradas
Nunca mais voam
De medo de caírem novamente do céu
Vou- me
Porque se faz tarde essa ida
Mas no tempo exato
De se evitar tragédia maior
Vou-me
Sem esgotar o gosto do quero mais
A vontade toda, o bem querer
Vou-me
Vou-me agora para que possa de ti
Guardar a boa saudade apenas.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Prefeito palhaço


Gosto de Carnaval,
Sim, como gosto,
Mas como brincá-lo
E ser alegre
Se meu irmão
Morre em hospitais,
Nos corredores do açougue?
Como, columbina minha,
Ter a alegria do pierrô prefeito
Perfeito palhaço
E usufruir do dinheiro público na avenida
Enquanto meu irmão
Morre sofrendo de irresponsabilidade?

sábado, 9 de fevereiro de 2013

O engano de Halley

E aquele cometa que nos prometeu tanta coisas
Brilhou no céu enquanto eu fazia cálculos
E tu olhavas as constelações em combinações
Com a tábua das luas, as pegadas dos signos
Passou o cometa no Zodíaco que mentia
A jurar felicidade que ressoavam nos sinos
Da capela que nos queria em casamento
O cometa partiu para a eternidade, pequenino
E nós ficamos ali, olhando para o céu vazio
Iludidos pelo mapa astral do falso paraíso.

O grito

Depois de várias décadas
Brigando com os versos
Indo para o tapa com as palavras
Chutando a gramática
Ainda não aprendi como faz
Como se faz para dar um grito
Dentro de um poema
Desses gritos de colocar medo
Lá do fundo, do fundo de uma cova
Cova escancarada e escura
Cova escura de cemitério
Em que meus pobres irmãos são jogados
Por esses políticos safados
Que andam com imunda vaidade
A vaidade enfiada na bunda..


O guarda-chuva da louca

Vi a louca passeando na chuva
Guarda-chuva cor-de-rosa
Mansa contando pingos d'água
Passou como as águas nas galerias
Invisível, mas existente
Passeava na rua molhada
Com alguma coisa a ser lembrada
Talvez, ela mesma, aloucada
Apartada de si e ensimesmada.





sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Quando ouço trovoadas

Era um dia de chuva
Como hoje
Sei disso, a chuva
Aviva-me lembranças
Começo de tarde
Antes do trabalho
Trovão, coriscos, vento
E tu chegaste
Junto a mim
E me disseste
De teus medos
De tuas dores
De teus temores
Tinha acabado de acordar
O trabalho durara até tarde
Pensava sonhar
Só acordei mesmo, creio
Quando já te amava
Ao som das trovoadas
Da chuva que caía
E no telhado barulhava
Já estava de viagem marcada
E te amei como nunca
Naqueles breves minutos
A chuva passou
E tu dormias cansada
Fechei a porta
E fui para o trabalho
Verões outros vieram
Chuvas outras vieram
E tu, na chuva me faltavas
Como ainda me faltas

Que destino é esse, meu Deus,
Em que só sou feliz
Quando escuto trovoadas?


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Zumbi penitente

Na madrugada fria que cheirava morte
Um triste zumbi cruzou meu caminho
Caminhava lento, esquelético e franzino
Com seus 70 anos pesando no lombo

Tinha o coração cansado, quase parado
Num respirar difícil a pedir em súplicas
Dos céus um pouco de ar emprestado:

"Aonde vais, penado penitente?", perguntei

E um fio de voz se formou naquela boca seca
E me respondeu em susto desdentado

"Vou marcar consulta para minha alma
"Na Unidade de Saúde do Céu, caminheiro
"Vou ver se lá doutro lado sou tratado
"Porque cansei de esperar nesta Terra
"O respeito que até cachorro merece."

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Passo miúdo

Vou num passo miúdo
Curtinho, meio sem querer
Sentindo a chegada perto
Com vontade de retroceder
Mas daqui não há volta
Minhas pernas são cansadas
E falta-me a força do querer
Para adiante, o esperado
E no rasto, lembranças
Do que fui e quis ser.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Sempre aberto

Feliz o coração 
que não tem portas 
de segurança
e sempre está disposto 
a incêndios.

Relicário de cinzas


Ah, se minha alma pegar fogo por ti
Anjo meu,
Por favor não apagues, não apagues
E depois,
Se as chamas pelas lágrimas do tempo
Forem extintas
Guarda as cinzas, guarda as cinzas,
Amor meu,
Guarda que elas são saudades
Dos carinhos teus.
.

Trágico homem

Da pedra lascada ao refinado mundo midiático. Muda-se a técnica, mas o homem é o mesmo, miseravelmente o mesmo, um poço de indiferenças, com os olhos grudados no próprio umbigo. O que nos diferencia dos nossos selvagens ancestrais? Um pouco mais de habilidade nas mãos para fazer inutilidades. De resto, o trágico viver sem se saber, como qualquer animal.

O canto que me acorda

Que estranho canto me acorda?
Que ave ousa cantar na minha árvore
Que plantei para coisas que conheço?

Canto feito de dor, em notas graves
Que me tiram do grave peito
Suspiros de saudades esquecidas.

Voa ave, voa, busca quem de ti precisa
A minha alma dorme despojada da vida
Porque tanta dor nela não mais cabe.