quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Neandertal cibernético

Absolutamente não.
Não é preciso navegar até as Galápagos
Para entender a evolução
Que nos determinou esta incrível
Vocação para a violência.

Temos no sangue o mesmo rubro ferro
Que corria nas veias dos neandertais.
Por isso, pensamos a cibernética
Enquanto acalentamos monstruosidades.

Brutos deuses de nosso tempo,
afetos à loucura, somos capazes de matar
Em guerras, em disputas por território,
Por comida e por outros torpes motivos
Que envolvem até mesmo a falta de motivo.

- Quer coisa mais primitiva do que isso?!? -
Matamos, ferimos e trucidamos
Até mesmo outros corações desejados.
Podemos matar o que nos apaixona!

A racionalidade não nos suprimiu
A passionalidade, o amor de morte,
Este desejo de ter o impossível,
E matar por desejar é nossa alucinação divina.

Verdadeiramente não.
Não é preciso ver as tartarugas-das-Galápagos
Para saber que o verdadeiro amor
Só atingirá o coração dos homens
A passos pesados marcados por absurda lentidão.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Cicuta, o colírio dos olhos

Na realidade - não leves em maldade -
Tu só podes existir reflexo nas retinas
Desses olhares vazios e entediados que perambulam mundo.
Mas, por sorte ou desespero,
Tu não tens importância para esse vulgo que vê apenas o que deseja ver.

Afinal, como existir de verdade
No olhar desta gente desnorteada que, apavorada, tenta esquecer do triste destino, da própria e inadiável morte, assistindo ao Big Brother e tendo na retina aquilo que jamais vai encostar o dedo?
Desta multidão que lava os dentes após ruminar o nada?

Como existir de verdade
Aos olhos desses pobres condenados
Que nunca vão entender, minimamente que seja, o existir?

Não penses, por isso,
Ser a cicuta o melhor colírio para tais globos oculares.
Não os tenhas em ódio.

Lembra:
Não é permitido ao homem
Deixar de ser somente porque vaza
Os olhos de quem o vê.

Ainda, lembra:
É a ignorância que mantém o juízo
De boa parte da humanidade.
Todos querem viver, mesmo que inutilmente,
Fazendo besteiras, colecionando ossos,
Estocando dinheiro... Todos querem
Ser a insanidade dentro da insanidade.

Assim são distraídos pelas inutilidades,
Porque pensar para eles
É vislumbrar a própria, a escura, e inevitável cova
E crê, essa não é uma boa imagem de companhia!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O berço do pequeno Jimi

Curtiu muito Rock and rool
Na breve e interrompida adolescência.
Hoje, ao lavar panelas
Olha para o berço descontente.
Chora ao ouvir um blues da Joplin
E reclama da vida
Ao ver aquele miúdo vermelho
- com a carinha de joelho -
A escancarar a boca,
Ainda sem dentes,
Num gutural choro de fome.
Impaciente, tira o peito e grita:
"Mamãe já vai dar o mamá, Hendrix!".

Tarde de vento

Vieste com o vento,
Num final de tarde,
Cheia de flores amarelas
A te enfeitar os cabelos.

É, vieste com o vento
Soprado em branda brisa.
Deste-me, depois, um beijo leve
A pedir-me breve amparo
Neste voar constante da vida.

(Amparei-te - estava só -
Por que não te dar o braço?
No conhecer do adeus somos esquecidos)

Cômodo, inerte e preso
Guardo-te, muda rouxinol,
Na gaiola dourada
Como triste e calado enfeite.

Hoje, quando sinto o vento,
Vislumbro nele aragem mágica
A lecionar para ti, cativa,
Os antigos e olvidados mistérios
Do voar livre e contente.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Presença


Ausente de mim mesmo
Ando pela cidade a esmo
A sentir-te n’alma presente.


Em latim:

Praesentia

Absens mei ipse
Temere urbe ambulo
In animam te sentiendo.

Taverna do Limbo





Uma mulher flutuava nua...
A taverna à noite ardia,
Mil poemas ali, no espaço,
Desenhados pelo corisco
Que rasgava o céu negro e nu.
Vergílio estava sóbrio e quieto,
Tinha em suas mãos novos versos
Que o temporal logo ouviria.
Tácito procurava a tragédia
No vermelho do molho do prato
Que levado à boca escorria
Pela barba, peito, até a túnica.
Nua flutuava uma mulher
Na taverna que na noite ardia.

Em latim:

Limbi Taberna

Femina nuda fluctuabat...
Noctu hac taberna ardebat
Mille poemates ibi, in spatio,
Fulmine adumbrabant
Quod caelum nigerum et nudum lacerabat.
Vergilius sobrius et quietus erat,
Novi versus in manibus habebat
Quos propediem tempestas audiret.
Tacitus tragoediam quaerebat
In rubricam conditionis patinae;
Qui oris barba, pectore,
Tunica tenus
stillabat.
Femina nuda fluctuabat
In tabernam quam nocte ardebat.


Ilustração de Gustave Doré (séc. XIX): Dante, Homero, Lucano, Virgílio e outras grandes figuras da Antiguidade no Limbo.

Naufrágios

Uma escuna de sonhos
Navega meus mares neuroniais.
O timoneiro é neurótico,
O capitão é lunático
E a tripulação vive
De conspirações e motins.

Em latim:

Naufragia

Sominii navis
Cerebri maria mea navigat.
Gubernator iracundus,
Classis praefectus lunaticus est.
Nautae homines vivunt
Conspiratium et tumultuum.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Oi!


Estou apenas de passagem
Por isso, trago no peito
A solidão dos mestres
E a sabedoria dos imbecis.

Em latim:

Heus!

Solum transitus sum
Ergo, in pectus adduco
Magistrorum solitudo
Et stupidorum sapientia.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Vadia

A Lua,
Esta doce vadia,
Some por sete dias,
Noutros brilha para todo mundo,
Mas, pudica,
Mesmo que sempre nua,
Não é de ninguém.

Em latim:

Errabunda


Luna,
Dulcis errabunda,
Septies evanescit,
Saepe hominibus totis refulget,
Sed, pudica,
Tamen nuda semper,
Nonnulli hominis non est.

Vingança

Sei que o tempo me gasta,
Mas eu gasto o tempo também.


Em latim:

Pæna

Tempus me consumit, non ignoro,
Sed tempum quoque ego consumo.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Haiti, os deuses que te devoram

Ai de ti, Haiti,
Que sofres ao ouvir
Os ais de teu povo.

A terra tremeu por ti Haiti,
Pelos anos de fome,
Pelos anos de matança,
Nos ais infinitos de ti.

Ai de tuas crianças, Haiti,
As que sobraram órfãs.

Ai de tuas mães, Haiti,
As que sobraram sem filhos.

Hoje só há zumbis pelas ruas
E os ais sufocados por entre escombros.

Hoje tuas mães não beijam seus filhos
Que, sem nomes, dividem vala infecta.

Hoje a fome não será dividida,
Os mortos não passam fome.

Hoje a esperança chora
No interior da terra
E os tremores dos ais são seus soluços.

Terra de tantos deuses,
Por que os deuses te devoram?

RG & CPF

Haveria, sem dúvida,
direito de se me perguntar:
Mas quem é esse todo mundo?
F. Dostoievski


É óbvio:
Tens cabelos
Porque existe xampu

Tens dentes porque existe a Colgate
Que te permite mastigar os teus dias sem gosto

Tens olhos
Porque existem óculos

Tens fome porque existem vacas e agricultura
Afinal, existir nos impõe preço

Existes porque fazes parte das estatísticas do IBGE,
Tens RG, CPF e um fogão a gás

Existo porque posso te ver na TV
E, em dois minutos, saber de tua história.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sono lento

Daqui a pouco pretendo escurecer,
!!!Pensar em nada dá uma preguiça danada!!!
Morfeu há de dar-me sono movimentado
Arejado pelos morféticos demônios,
Que se aproximam sem sinos no pescoço
E fustigam a insanidade humana.
E neste breu em que tudo se vê,
Andarei, morfeticamente,
A desafiar abismos
Porque mesmo em sonho
Viver se faz arriscado.

Cantagalos

Cabecinha de Vento
Sobe nos móveis
Cai, bate a cabeça
Mas não chora.

O macaquinho se levanta
Sobe na cadeira
(É teimoso nosso
Cabecinha de Vento)
E cai infinitamente

Pela manhã, cedinho
Toda a vizinhança acorda
Com o canto de mil galos
Que vivem no poleirinho
Do Cabecinha de Vento.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Atleta

O poema teimou horas
Em minha cabeça.
Enjoado, fugiu,
Tomou a rua,
Dobrou a esquina...
Memória falha,
Poema ligeiro.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Negro

O Brasil é racista
Só alguns negros não sabem disso
O branco disse que o preto tem nova cor
E a chama de "afrodescendente"
O negro aceitou essa nova cor
Como quem aceita um novo chicote
Que humilha sem ofender
O branco inventou cotas
Para se desculpar de antigos pecados
E o negro aceitou ser cota
Que humilha sem ofender
Cota
Que discrimina outros brasileiros
Também sem ofender
No Brasil,
O branco continua branco como sempre foi
E preta
É apenas uma cor de pele
A ser banida dos dicionários.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Por aí, paisagens

Caminho
A queimar paisagens.

Árvores, campos e até o mar
Fumam;
Ardência nos meus olhos.

A fumaça estampada no céu
Tatua
A brevidade em coisa eterna.

Meus braços soltos
Ardentes
Despedem-me do meu tempo.

Caminho e a fumar ardo,
Queimo,
A queimar-me nas paisagens.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Logo agora, Zilda!

Como são inoportunas as tragédias.
Zilda Arns parte agora,
Parte assim, como devem ser as partidas,
Sem adeuses, no mais repentino repente,
E logo agora, Deus meu!
Quando este pobre mundo carece
De pequeninos gestos de amor!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Choro de espera

Meu pensamento viaja pelo silêncio
E encontra indecifrável lágrima em teus olhos.
Por que chora? – pergunto ao vento.
Por que choras? Por que mesmo feliz tu sofres?
E uma brisa soprada dos mares de todas as sortes
Diz-me que choras, porque chorar é rir às avessas
Dessa humana louca loucura
Que é viver a espera da morte.