sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Bolo de baunilha

Ah, aquele cheiro de desodorante barato
Dissolvido no mais puro álcool
E que você dizia ser perfume!
Ah, aquele aroma de baunilha
Que saltava da cozinha
E que você dizia ser um bolo
Feito de prazer!
Ah, aquele afeto comum
Sem filosofias
Que você dizia ser amor!
Ah, essas saudades
Feitas de coisas simples
E que você deixou tão grandes!

Desacordos

Vivo em desacordos com a vida
Porque faço poesia

Os meus versos são contrariedades
Porque vivo a poesia

As letras não aceitam conformidades
Porque são revoltas

O poeta não aceita falsas alegrias
Porque essas mentiras
São angústias sorridentes
Deste mundo que morre.

No meu céu

O dia já vai pela metade
E de você notícia alguma
Telefone mudo
Jornais falando do ontem

Os aviões passam
E deixam rastros de nuvens
Num céu tão limpo.

Você passou ontem
E teu caminho
Apagou-se do meu céu.

Música e poesia

A música  e a poesia
De vez em quando
Deixam o céu
Para nos mostrar
Aos pouquinhos
Do que é feito
O coração de Deus.

Árvore morta

Não procure frutos
Em árvores mortas
Aqui não há amor
Já dei o que tinha
Alimentei o belo
Alimentei os porcos
Fiz sombra a tudo
E hoje nem folhas
Tenho para abrigo.
Vá, nem todo verde
Guarda em si a vida.

Abandono

E aquelas velhas vontades
Nascidas na juventude
E que hoje esperam
Missa de sétimo dia?

E aquelas velhas esperanças
Que sofreram descasos
E que hoje jazem
Em campo santo?

E aquele velho você
Que tomou outra forma
E que hoje sofre
De abandono?

Amor incerto

Diz-me esperar resposta,
(Todos querem respostas!)
A minha mudez é resposta,
Porque se algo digo,
A resposta será dúvida,
Dúvida sempre.
Se me perguntas se te amo,
Posso dizer que sim,
Mas os meus pequenos gestos
Podem dizer que não.
Se me perguntas se te quero,
Posso dizer que sim,
Mas quando fitas meus olhos,
Tu procuras um escondido não.
Não há certeza no amor
E é isso, a falta de certeza,
Que o faz tão divino.

Mágoas passadas

No teu corpo encontro
fogo guardado
a esperar centelha
que sobreviva
às densas chuvas
que vêm de teus olhos.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Bachianas


Ouço-te de longe
E do longe vem
Os tristes gemidos
Das Bachianas
Que deixam tua alma
Em suavidades.

Imagino a orquestra
A acompanhar-te,
Ou solitário violão
Na noite só.

No alto, bem no alto,
A estrela pisca
Como se suspirasse
A chorar
A imensidão do espaço
Que a separa
Do teu lamento sentido
Em agudos mansos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Meu jeito

Caso eu chorar,
Não se espante,
O choro é a nossa
Primeira expressão.
Nascemos chorando
Ao mundo querendo não.

Caso eu chorar,
Não faça espanto,
Esse é meu jeito,
Nascemos no berreiro,
Num susto com a luz,
Temendo a escuridão.

Caso eu chorar,
Não chore não,
Essa é a nossa
Destinação,
Chorar
No mundo,
Sentindo
O mundo
A nos fugir
Pelas mãos.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Feira de Caruaru

Amigo, estou indo, me vou...
Vou com a mula Cambaia...
Sei que são muitas léguas,
Mas vou no passo curto,
Antes que a noite caia.

Vou para a feira, amigo,
Vou à feira de Caruaru,
Vou ver boneco de Vitalino,
Vou dançar xote de Gonzaga...

E adepois, depois, amigo,
Tenho saudades de Severina
Deitada na rede de saia
Tomando vento safado
No calor que dela se espalha...

Eh, Severina me espera,
Mulher feita de fibra,
De carinho sem descanso.
Eh, vida severa!...

Eh, Severina, xodó danado!...
Durante sete dias
Trança-me as sandálias
De couro cru e corado
Pelo suor de suas pernas,
No sal de suas lágrimas.

Sei que sou vira-mundo
E ando pelos caminhos
Que a tudo gasta e maltrata.
Mas, Severina, fica triste não,
Todo ano volto, fica triste não!

Severina, todo ano eu volto
No lombo da Cambaia,
Pro seu quente colo,
Pra buscar novas sandálias.
Severina, fica triste não!

Na noite que ela não veio

Na noite que ela não veio
As estrelas se apagaram,
A poesia foi-se embora,
Os lençóis se esfriaram.

Na noite que ela não veio,
O destino em cores vivas
Lançado ao fogo morto
Também tornou-se cinzas.

Na noite que ela não veio,
Eu escutava Cesária Évora
Que na canção vaticinava
A mais doída das saudades.

A chave


Cadê a chave? A chave, cadê?
A chave de minh'alma, cadê?
Talvez, o padre que me batizou,
Ou o bruxo que me benzeu,
Quando eu ainda era uma criança
Cheinha de quebrantos,
Tenham com ela consumido.
Talvez, meu primeiro lindo amor
Ou o meu último e sem graça
Tenham a levado consigo. Cadê?
Cadê a chave? A chave, cadê?
Quero ver o que vai comigo,
Quero ver quem eu sou
Além do meu lado exterior,
Cadê a chave? A chave, cadê?

Depois da festa

Os dias depois da festa
São calmos, sonolentos.
Os dias depois da festa
São velórios da realidade.

Ontem, éramos exagero,
Ríamos no riso de Baco,
Entornando pipas de vinho
Para esquecer o hoje.

Hoje, agora, depois da festa,
Sobra-nos o necrológio,
A última citação nos jornais
Daqueles que seguem o rumo.

Ontem, ela estava comigo,
Ria, ria muito e tanto ria...
Hoje, só posso ver seu rosto
Grave, pelo vidro do caixão.

sábado, 25 de dezembro de 2010

A gaivota

Tão rara quanto inverosímil,
Ela deslizou pelo meu deserto,
Mancha branca no limpo céu,
Aquela só e solitária gaivota.

Vinha do mar? Não sei. Da praia?
Não sei. Distante era o oceano.
Depois, inútil seria explicar o voo
De tão exótico pássaro marítimo,
Intoxicado que ia de contentamento.

A gaivota descreveu círculos no céu,
Voou baixo para admiração e beleza
E no final da tarde, com o sol fresco,
Foi-se e ganhou as sombras da noite.

Nunca mais a vi em milhares de tardes,
Passou ali por um único dia apenas,
A contrariar todas as lógicas esperadas,
Para dizer a mim que a surpresa,
Por ser surpresa, jamais se repete.

Dulcineia e Beatriz


Porfiei na teima de buscar a ti
Percorrendo densos infernos,
Como se buscasse morta amada,
Tal fez o poeta Dante ao cruzar,
Ainda vivo, o terrível Aqueronte
A servir negras almas a Cérbero.

Ou ainda, de lutar insanamente,
Como soldado de Cervantes
A bater-me com os moinhos
Espalhados ao longo da vida,
Igual aos cavaleiros errantes
Em solitárias e graves batalhas.

Ora te sentia longe, inexistente,
Como a dulcíssima Dulcineia
Nascida de minha demência.
Ora te sentia longe, impossível,
Imortal no céu inalcançável
Como a beata e pura Beatriz.

Estive sempre em desvantagem
Nesta busca própria dos cegos,
Pois, ao meu lado não ia Sancho
A trazer-me para a realidade
Nem caminhava comigo Vergílio
A desviar-me do fosso em perigo.

Não sei nem como é teu rosto,
Somente de ti tenho vago esboço,
Mas prossigo inda nessa procura
Porque de outra forma morreria
E sentido para a minha triste vida
Por certo, certamente, me faltaria.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Pudica


Era uma moça tão pudica,
carola mesmo,
que nos dias santos
tomava banho frio
para acalmar a alma.

E eu, que nada acredito,
junto dela, com um ramo
de arruda na orelha,
um patuá no bolso,
a buscar melhor sorte.

Ela, toda ainda molhada,
sentou-se à beira da cama,
tirou o crucifixo do pescoço,
estendeu-me o branco braço
e tocou-me com sua febre.

Terras defuntas

Meu jardineiro está louquinho.
Encosta-se no muro, quieto
E depois dana-se a conversar
Consigo mesmo, com o ego seu.

Ele coloca a mão no rosto,
Pensa e planeja em voz alta
A próxima tarefa no jardim,
O próximo desatino em flor.

À medida em que se dana,
Dá vida ao que não floresceu;
Morre ao dar vida às plantas.

Meu jardineiro ficou louco,
Porque seu antigo amor
Floresce em terras defuntas.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fechado para balanço


Ao final do ano,
Todos deveriam
Fechar o coração
Para balanço.

A conta deve ser feita
Na praia, se possível,
Antes de se pular as ondas,
Numa contabilidade solitária.

E dentre os ativos,
Passivos, imobilizados
E restituições,
Na soma
E subtrações,
O resultado
Esperado
Tem que ser um só:
Saldo negativo,
Um deficit medonho
Ao se saber
Que se deu amor
Além da medida
Desejada e querida
Pelos egoístas sovinas,
Que só amam a si,
Ou talvez, nem isso.

Nesses números finais
Jamais espere
A contrapartida.
O verdadeiro amor
Jamais espera paga,
Deve ser gratuito
E desinteressado.
E depois, na vida,
Em que nos danamos
A acumular bobagens,
Este é o único capital
Do espírito
Que, ao ser dado,
Não se faz prejuízo.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Idade do Cobre

Sempre faço cópias
Dos meus escritos
Em folhas de papel
E uso para tal
A não tão habitual
Caneta esferográfica,
Uma grande tecnologia
Do século passado
E hoje quase esquecida.

É que tenho medo
De uma revolta eletrônica,
De uma greve dos elétrons,
Esses novos escravos
Que são obrigados
A guardar nossos
Pensamentos e afazeres
Em memórias chipadas,
Guiados por vias de cobre.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Caixa de luz

 À Jacqueline Denise Alcantara

Quisera ter guardada,
No fundo do bolso,
Uma caixa mágica
Com o brilho do Sol
E nos dias de chuva
Ou de pura tristeza,
Abri-la com cuidado.
A luz dela sairia
A misturar risos,
A buscar felicidades,
A nos iluminar
Junto com os escuros
Que escurecem
Deste louco viver
A louca vontade.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Onde os adeuses naufragam


À Natália Núñez
Olhas para o mar
Porque há sempre
Uma esperança
A navegar
No clarão dos teus olhos,
Relâmpago
Das tempestades.

Olhas para o mar
E a ele jogas
Vontades do coração
Que, em vão,
Saltam as ondas
E depois
Batem nas pedras,
Afogam-se
Nos vagalhões,
Em impiedades...

Olhas para
O desconhecido
Ondulante
E te acalmas
Ao repousares
Teus olhos
No horizonte
Curvo
Como tuas costas
Que carregam
O mundo.

Para lá seguiram
Os adeuses
Compridos,
Alongados
De infinito a infinito,
Perpétuos,
A se repetirem,
A se repetirem...

Lá, onde o céu
Encontra o mar,
Naufragaram
Os últimos barcos
Que deixaram
Expostas
Suas rasgadas velas
E as lusitanas
Cruzes
Em que Vasco
Crucificou
Todas as saudades.

Agenda de sábado


Tomar café ouvindo os passarinhos...
Ler aquele velho livro
Que me aguardou tanto.
Comprar sapatos para os pés cansados
E que ainda se encantam
Pisando mundo.
Cortar os cabelos teimosos
Que me sobraram no pensar.
Tomar uma cerveja com
Os bons amigos
Que comigo dividem a fé no homem
E escutar aquela canção antiga,
Linda, linda e feita de saudade!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sem sustos

As crianças da creche,
Da creche vizinha,
Estão num berreiro só.
Esperam Papai Noel,
Balas e doces
São a promessa.
Eu cá, estou só, quieto
A escutar o pregão
Do verdureiro,
A contar os raros carros
Na rua, sob minha janela.
De repente,
Um silêncio e uma única voz:
"Olha o Papai Noel"!
Mais silêncio:
"Olha a melancia"!
As crianças gritam
E meu coração silencia
Porque não mais se assusta
Com a simplicidade da vida
Que flui em sonhado trenó
E na voz do vendedor
De melancias.

Homem moderno


Ford nos moldou a vida
E não notamos
 
Somos o operário de Chaplin
E não notamos

Viver tornou-se uma linha de montagem
E não notamos.

No mundo de Ford
As coisas precisam ser refeitas
Repetidas, repetidas ad aeternum
Num despropósito medonho
E sem sentido
Para justificar o moderno.

Vamos ao trabalho
Todos os dias
Fazemos o que nos mandam
Todos os dias
Também mandamos fazer
Todos os dias
Para obter o repetido
Todos os dias
Voltamos para casa cansados
Todos os dias
Até o dia que não voltaremos
Para casa
Porque ganharemos descanso
Compulsório
Eternas férias de nós mesmos.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Natal à venda

Um outdoor pode vender o Natal,
A televisão pode vender o Natal,
O shopping pode vender o Natal,
Porém, não quero comprá-lo.
Fico contente em apenas vê-lo
No duro coração dos homens
Que, somente nesse momento,
Agem em terna humanidade.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Masmorras

Tento fugir
Das masmorras
De teus olhos.
Neles, quantas
Torturas.
Neles, tanta
Dissimulação.
Neles, quantas
Ilusões.
Neles, tanta e tanta,
Quanta e quanta
Mentira.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vermelho

A bandeira
Da minha vida
Tem um vermelho
Que imita as rosas
Do meu jardim.

Negativas

Negaste-me
Os dias bons e ensolorados ao teu lado
Negaste-me
As noites de luar refletidas em teus olhos
Negaste-me
Os abraços em intermináveis tardes
Negaste-me
Teu sono tranquilo depois do amor
Negaste-me
Teu aperto de mão nas horas sombrias
Negaste-me
Teus beijos que me acordavam para a vida
Negaste-me
A felicidade que só tenho em saudade.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A caixa de Euclides

Compactuo contigo revoltas
Contra esse mundo cúbico
A nos limitar a criatividade,
A nos por freio à imaginação.

São dois mil e trezentos anos
Sobre os nossos pobres ombros
Que dizem de nossa infelicidade
Axiomática e tridimensional.

Três vezes maldito é Euclides
Que nos prendeu nessa caixa
Sem as medidas do espírito!

Ah, se tal geômetra fosse poeta,
Ele teria explicado a geometria
Nas dimensões de nossas almas!




quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O segredo de Messias

Quase nunca vou a velórios,
Prefiro entristecer-me só,
Sem a companhia do morto.
E, depois, o morto é sem graça,
Não chora com a gente,
Não ri dos presentes,
Não reclama das coroas de flores.
Não nos fala dos segredos,
Aquilo que ele leva mudo
E que morreu com ele.
Basta morrer para se tornar
Um chato de verdade.

Um dia, o Messias me ligou,
Estava muito doente.
Aflito,  queria falar comigo:
"Coisa importante!".
Antes do encontro,
Marcado para o dia
Seguinte, o Messias morre.
O que queria o Messias?
Não sei, ninguém sabe.
Morreu deixando-me
A curiosidade.
Quer coisa mais chata
Do que isso?

Mas eis aqui uma verdade:
O verdadeiro segredo,
Aquele que merece esse nome,
- SE-GRE-DO -
É bagagem do morto
E somente dele.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A arte de comunicar o nada

Nada me causa tanto
E tanto aborrecimento
Quanto as mensagens
Que nada dizem de nada.

Uma anúncio publicitário fajuto,
Uma poesia agressora da língua
E texto escrito no balcão do açougue
São simplesmente nojentos.

Ora, se nada há para ser dito,
Por que me fazem perder tempo
Com essas bobagens vazias
Destinadas à boca do lixo?

Veio-me às mãos agora
Um suspeito poema...
Suspeito como seu dono,
Que deveria ser preso.

Preso pela polícia, isolado
E guardado na solitária.
Acusação: assassinato
Da última flor do Lácio.

Ali, naquelas linhas,
Encontro o sujeito,
(Quando encontro o sujeito!)
Separado do verbo.

Ali, os verbos intransitivos
São bárbaros transitivos
E os oblíquos são tomados
Pelos pronomes retos.

O objeto direto, então,
Deus meu, também
Vem entre vírgulas,
Enquanto nus são os vocativos!

Será um novo Pessoa?
Um Saramago, talvez,
A inovar a velha língua?

Não, não, meus amigos,
É apenas unitriste ser,
Entediado com a vida,
Que, na falta do que fazer,
Elabora tristes rabiscos,
Garranchos de analfabeto,
A comunicar o que realmente
Tem na sua cabeça intestina:
O vácuo total e completo!

As sobras do banquete


De ordinário, os poderosos não gostam dos poetas.
Nós somos perigosos a adivinhar seus desejos escusos.
Por essa razão preferem-nos presos, talvez defuntos.
Obtusos, não sabem que as tumbas nos retumbam.

Só há um tipo de poeta que os poderosos adoram,
O poeta menor, o poeta vendido, o poeta lambe-botas.
Aquele que se bota preço para louvar grandes nulidades,
Aquele que vê no mecenato uma obrigação do Estado.

O poder veste-se com a vaidade de fingida virtude
E dá cores celestes a tudo que não vale ou presta,
Cores que se emprestam falsas à lira dos graxistas.

E assim segue este velho mundo, bambaleando, girando...
Com os poderosos de vaidades se empanturrando
E os maus poetas no chão, ao redor da mesa, ciscando!

domingo, 5 de dezembro de 2010

Até logo

Não finjas que não sabes
O que na minh'alma vai.
Faço-me entorpecido
Pelo que desejo e sinto
E meus olhos me traem.
Dizem eles o que minto,
E que de ti por carinho omito,
No adeus para nunca mais.

Consciência ecológica

É, minha amiga, tens razão,
Somos artífices da destruição,
Porque fodemos em celeridade
A tudo que metemos as mãos!

Alquimia


Para a petroquímica 
Jarde Dembiski
Dá-me um remédio forte,
Tenho o coração em dor.
Injeta-mo na veia, doutor,
Ao matar-me, terei sorte.

Não o acetylsalicylicum
Comprimido na Aspirina,
Ou a alucinada morfina
A deixar-me paralítico,

Dá-me esquecidos alquímicos
Formulados com feitiços
De femininas entranhas.

Dá-me essa poção, doutor,
Pois minh'alma me estranha
Ao sofrer do mal de amor.

Bom-dia, capim!

Tenho medo de perder a razão,
Andar por aí a dar bons-dias
Às árvores e às moitas de capim.
Mas, meu Deus, e se já estiver louco,
Irremediavelmente insano?
E se o verdadeiramente sensato
For saudar a árvore e o capim?

Sim, olho ao redor e vejo risos soltos,
Riem de mim, por certo,
Porque reservo o meu bom-dia
Para o Belizário, o barbeiro,
Para o Pedro, motorista do ônibus,
Para os colegas de repartição.

Sim, ouço risos de piedade,
Risos de comiseração.
Falam de mim pelas costas:
"Lá vai o doido, o doidinho sim,
Que ignora as árvores,
Que não dá bom-dia ao capim".

sábado, 4 de dezembro de 2010

Lava-me as feridas

Tenho meus punhos em sangue
De tanto dar porrada
Em pontas de faca.
Quando estendo a ti
Os meus braços,
As minhas mãos,
Pouco quero.
Não quero abraços,
Ou felicitações por ter batido
Naquilo que não tem mais jeito.
Quero sim, um curativo,
Gazes que me estanquem o sangue,
Porque amanhã, bem cedo,
Devo acordar
Para mastigar o arame farpado
A cercar-nos em nós mesmos.
Devo encher de porrada
Esses minutos vazios
A nos determinar o fim próximo.
Lava-me as feridas,
Trata-as levemente,
Amanhã devo amanhecer
Para acariciar o tédio.
Acariciá-lo inteiro
Do único jeito que ele entende:
Na pancada justa e bem dada,
Num certo e certeiro tapa.

Fado da agonia

A chuva chora e eu canto
Saudades tuas, saudades...
É esse o meu triste fado
Ao pensar-te... Pensar-te...

A chuva escorre fria
Pelo meu rosto triste,
Aflito e sem alegria
Ao querer-te... Querer-te...

Ai meu Deus, que agonia
Ter no peito este fado
Vestido da fantasia
Do desejo a desejar-te...

Fado meu que me mata,
Que amar não vale a pena.
Fado meu que me falta
Ao amar-te, ao amar-te...

Minha pátria

Meu amor por ti
Chegou-me ao peito
Numa ancestral caravela
Que trouxe-te distinta
Na cruz das velas
Dos cruzados
Lusitanos.

Sim, meu amor nasceu
Além oceano
Lançado ao mar
Para encontrar-te
Sob o Sol austral.

Sim, ele viveu a crueldade
Da incerteza dos rumos
Porque sabia-te meridional
Desenhada numa constelação
A revelar-se no céu escuro.

Abismos

Gosto de ver teus
olhos
E descobrir neles
portos,
Grandes infinitos
abismais
Construídos sobre
mistérios:
Um não-sei-que de
inferno,
Um não-sei-que de
paraíso
Em que meus olhos
ancoro.

Ouvir a ti

Desejo te ouvir sem essa mania
Minha de adivinhar-te o sofrimento,
Os teus desejos nunca completos,
As tuas inseguranças em sutilezas;
De suspeitar exageros expressos
Em tuas lágrimas em fartura.

Quisera, meu bem e desespero,
Interpretar-te por meio do olhar.
Ao olhar-te apenas entender-te.
Mas não é assim que se decifra
Os mistérios ilógicos da mulher.
Para isso, não há fórmula alguma.

Tenho que parar com essa mania
De ouvir música e as pessoas
Adivinhando as notas e os gestos
Medidos em imponderável partitura.
Quero ouvir como todo mundo,
Surpreso com o que se repete.